Vitor Araújo Filgueiras[1] e José Dari Krein[2]
Está em pauta, mais uma vez, uma reforma da Previdência. Desde os anos 1990, têm ocorrido sucessivas mudanças nas regras previdenciárias no Brasil, prevalecendo a redução de direitos de trabalhadores, dependentes e aposentados. A justificativa para os ataques aos benefícios, consumados ou almejados, tem sistematicamente se baseado na comparação entre receitas (algumas) e despesas imediatas da Previdência, cujo resultado seria negativo. Com base nessa ótica são feitas as alterações, e também com base nela a Previdência continua sendo considerada deficitária.
O objetivo deste breve texto é demonstrar que: 1) é possível haver uma elevação substancial da receita da Previdência (ou, na forma de cálculo dominante, superávit no balanço), caso seja priorizada a arrecadação via combate à sonegação das contribuições; 2) as propostas em curso não focam as receitas e o ataque à sonegação previdenciária porque a forma como a política pública previdenciária é discutida e implementada (a opção entre enfatizar gastos ou arrecadação) no Brasil tem natureza classista, e priorizar o corte de gastos como forma de regulação da Previdência atende aos interesses dominantes.
Agora, um dos argumentos para a nova reforma da Previdência é a mudança na estrutura demográfica da população brasileira. Entretanto, a tônica e o pano de fundo do debate são, mais uma vez, cortes nas despesas com benefícios, sendo aventada, inclusive, sua desvinculação ao salário mínimo. Há algumas décadas, forças empresariais e seus representantes pregam a existência de um suposto déficit da previdência, consistindo basicamente na diferença entre contribuições em folha e individuais (patronal e dos trabalhadores) e despesas gerais. Nessa conta, no ano de 2015, o déficit teria atingindo 85,8 bilhões de reais[3].
Muitos já apontaram para o método completamente oblíquo desse cálculo, que abstrai que a Previdência possui receita composta por outras fontes além das contribuições individuais e em folha, que ela faz parte da seguridade social e que seu caráter é tripartite[4]. Contudo, vamos pressupor que as receitas da Previdência se resumem às referentes à folha de pagamento e que essas contribuições deveriam ser idênticas ou superiores às despesas com benefícios. Já que o foco na despesa, mesmo após sucessivas reformas, não tem equacionado essa relação, vamos olhar um pouco para a receita da Previdência, especificamente para as contribuições sonegadas, e ver como a quitação desses valores impactaria na conta do “déficit”.
Ademais, a reforma está sendo apresentada como emergencial, mas mudanças etárias para aposentadorias só terão impacto nas despesas, se tiverem, daqui a muitos anos. Na reforma de 1998 já houve alteração nos parâmetros etários para aposentadoria, que são proporcionalmente mais rígidos no Brasil do que em outros países de estrutura demográfica menos favorável do que a nossa. Se, de fato, a mudança demográfica deve ser analisada e discutida, a necessidade de mudar as regras atuais não é iminente (tanto assim que não foi pautada nas últimas eleições) e nem será da noite para o dia que uma fórmula socialmente justa vai ser construída[5].
Por outro lado, ao contrário dessa nova reforma, a sonegação da Previdência não é novidade, provoca perdas enormes aos cofres públicos e não demanda alteração normativa para ser combatida. A elevação da arrecadação pode ser iniciada imediatamente pelos órgãos do Poder Executivo, especialmente por meio da Inspeção do Trabalho.
Apresentaremos apenas cinco situações nas quais a receita da Previdência Social é brutalmente sonegada pelas empresas no Brasil, e algumas estimativas preliminares dos valores que deixam de ser destinados ao financiamento dos benefícios.
- Trabalho assalariado sem carteira assinada
Em 2015, considerando somente os trabalhadores empregados no setor privado explicitamente sem carteira assinada, deixaram de ser arrecadados aproximadamente R$ 41,6 bilhões em contribuições[6]. Se considerados trabalhadores domésticos sem carteira não contribuintes, são mais R$5,7 bilhões[7][8]. Apenas o trabalho assalariado explicitamente sem carteira, portanto, implica diretamente um desfalque de mais de R$ 47 bilhões para a Previdência, ou mais de metade do suposto déficit apontado para 2015.
Não estamos falando de isenções ou benefícios, mas de sonegação. Vale ressaltar que esses valores não consideram os montantes pagos retroativamente nos casos de formalização do vínculo de emprego via Fiscalização.
Ademais, esse montante de recursos é muito subestimado porque há outros 22,6 milhões de trabalhadores enquadrados como ocupados por conta própria, mas percentual não desprezível deles representa assalariados contratados de modo irregular. Pelo contrário, muitas pesquisas já mostraram como o assalariamento disfarçado é um procedimento comum e crescente na gestão da força de trabalho no Brasil[9], incluindo tanto trabalhadores sem inscrição na Previdência, quanto trabalhadores inscritos, mas não como empregados[10]. Mesmo aqueles que contribuem, o fazem com parcela ínfima do que seria devido no caso do reconhecimento da relação de emprego. No caso do Micro Empreendedor Individual (MEI), a alíquota reduzida vai até 5% do salário mínimo.
A terceirização irregular, seja via MEI ou integrantes do SIMPLES, também desfalca a arrecadação da Previdência, pois essas pessoas jurídicas interpostas arrecadam menos do que os verdadeiros empregadores fariam.
- Salários não pagos ou “pagamento por fora”
Outra fonte bilionária de sonegação da Previdência é a subtração da remuneração dos trabalhadores ou o pagamento “por fora” da folha de pagamentos. Para ilustrar, segundo estudo realizado pelo Ministério do Trabalho com base em dados da RAIS, divulgado no início de 2010, as empresas brasileiras poderiam deixar de pagar 20 bilhões de reais por ano em horas extras aos trabalhadores[11]. Apenas esse valor, desatualizado, já implicaria o recolhimento de mais de 5 bilhões de reais anualmente à Previdência.
Mas as horas extras são apenas uma ponta do iceberg de algo que parece ser rotina no mercado de trabalho brasileiro. Em amostra de cerca de 300 empresas pesquisas por Filgueiras (2012), mais de metade das empresas não pagava o salário integral dos seus trabalhadores. Há diversos exemplos que, mesmo individualmente ou por setores específicos, demonstram como a sonegação da remuneração (especialmente parcelas) legalmente devida atinge níveis pandêmicos no país[12]. Ou seja, garantir a contrapartida legalmente prevista à venda da força de trabalho no Brasil, além de distribuir renda, incrementaria substancialmente os cofres da Previdência.
- Acidentes de trabalho e benefícios acidentários
Todos os anos a Previdência gasta bilhões de reais com benefícios acidentários relacionados a acidente de trabalho e doenças ocupacionais. Em 2013, esse valor foi de aproximadamente R$8,8 bilhões.
A Previdência pode reembolsar essa quantia, caso o ajuizamento de ações regressivas, especialmente coletivas, seja generalizado para os casos pertinentes. Ademais, esse valor poderia nem ter sido desembolsado pela Previdência, caso as empresas comprimissem as normas de saúde e segurança do trabalho e adotassem uma gestão da força de trabalho menos predatória.
Esses cerca de R$8,8 bilhões, contudo, são também uma parte do iceberg que a Previdência deixa de arrecadar por conta dos acidentes, já que é um valor referente apenas aos cerca de 300 mil auxílios acidentários concedidos anualmente.
- Acidentes de trabalho cadastrados como doença comum
Muito maior do que os gastos com benefícios acidentários são as despesas com auxílios cadastrados como doenças comuns. Contudo, grande parte do adoecimento coberto por auxilio doença comum é, na verdade, adoecimento ocupacional, por conseguinte, deveria ter os valores ressarcidos pelas empresas, ou ser evitado.
Levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em pesquisa realizada em convênio com o Ministério da Saúde, estima que, em 2013, cerca de 4,9 milhões de pessoas sofreram acidentes de trabalho, quase 7 vezes mais do que o número captado pelo INSS. Desses acidentados, sem contar acidentes de trânsito, 1,6 milhões de pessoas deixaram de realizar quaisquer de suas atividades habituais, e 613 mil tiveram sequela e/ou incapacidade decorrente do acidente.
Destarte, há número muito maior de vítimas que deixaram de trabalhar, tiveram sequela e/ou incapacidade decorrente do acidente, do que de benefícios acidentários concedidos. Tudo indica que grande parte desses trabalhadores é enquadrada em auxílios para doença comum, cujo crescimento sistemático alcançou 2,3 milhões de benefícios em 2013, perfazendo um total de R$17 bilhões.
- Ocultação de acidentes, riscos e Fator Acidentário de Prevenção
Outra fonte de sonegação das receitas da Previdência é o Fator Acidentário de Prevenção (FAP) que é aplicado, conforme o índice de acidentes de trabalho, nas alíquotas da contribuição denominada Riscos Ambientais de Trabalho (RAT) (antigo Seguro de Acidente ao Trabalho). O FAP constitui um multiplicador, que varia de 0,5 a 2 pontos, a ser aplicado às alíquotas de 1%, 2% ou 3% da tarifa por subclasse econômica. Ou seja, tanto o enquadramento da empresa por setor econômico, quanto o número de acidentes por ela comunicado, influenciam diretamente no percentual incidente em folha, que pode variar de 0,5% a 6%.
Isso implica uma variação violenta no total recolhido por cada empresa a depender das informações que prestar ao Estado. Segundo a Previdência, mais de 85% dos estabelecimentos empresariais no Brasil estão na faixa do bônus do FAP[13]. Nesse cenário de bônus generalizado, o RAT arrecada anualmente cerca de R$ 27 bilhões[14]. Mas quanto seria o valor realmente devido pelas empresas?
Os dados da supracitada pesquisa do IBGE, corroborados por toda a literatura, indicam que há uma subnotificação enorme dos acidentes laborais (mesmo sem contar acidentes de trajeto), algo na casa dos 80% ou mais. Se apenas metade das empresas que hoje têm o bônus fosse enquadrada no multiplicador 1, dobrando sua contribuição, algo como R$13 bilhões anuais provavelmente serão acrescentados à receita da Previdência.
Qual reforma, ou reforma para quem?
Em suma, apresentamos estimativas iniciais, provavelmente conservadoras, de valores que, agregados, certamente superariam o alegado déficit atual, e consumariam uma efetiva reforma da Previdência. Para arrecadar essa quantia, é necessária vontade política. A alteração da direção da Inspeção do Trabalho (agora a cargo do Ministério do Trabalho e Previdência Social) é fundamental para a adoção uma atuação profícua e em parceria com os outros órgãos do Estado. Combater efetivamente a ilegalidade e reduzir a informalidade, a sonegação salarial, os acidentes de trabalho e a ocultação do adoecimento laboral são metas plenamente factíveis e não demandam mudanças legislativas. Basta efetivar o que está previsto da legislação vigente.
Muitas questões no debate sobre o financiamento da Previdência são relevantes, como a dinâmica da economia e do mercado de trabalho, as fontes de incidência, as desonerações, as isenções e também a composição etária da população. Mas, mesmo na atual lógica contábil dominante, foca-se quase sempre o corte de despesas, quando existe um imenso vazio a ser preenchido na receita. Se as lacunas na arrecadação são evidentes e não é necessário mudar a lei para combatê-las, por que esta outra reforma da Previdência não entra na agenda?
A questão é que fazer essa opção envolve um corte de classe social, por meio da origem do dinheiro em cada uma das possíveis reformas. Focar a reforma nas despesas retira recursos dos trabalhadores (ativos e aposentados) e transfere ao capital, via juros e demais formas de financiamento pelo orçamento público, além de abrir espaços aos negócios privados por meio da fragilização da seguridade pública. Focar a reforma na receita implica retirar recursos que estão sendo ilegalmente apropriados por empresas e repassar aos trabalhadores, fazendo justiça tributária e ainda distribuindo renda, reduzindo sofrimento, adoecimento e mortes de trabalhadores no processo de combate à sonegação.
Debater a Previdência com foco nas despesas é a chave da estratégia das forças dominantes para aprofundar sua apropriação da riqueza social. Ocorre que, como o discurso pelo qual essa estratégia se expressa está baseado no cálculo da diferença entre gastos com benefícios e algumas receitas com contribuições, ele é desmascarado em seus próprios termos, porque: 1) mesmo nos termos nos quais a visão dominante analisa as contas previdenciárias, se houvesse arrecadação dos valores devidos o dito déficit seria combatido e muito provavelmente tornaria o resultado superavitário; 2) O foco na despesa é muito menos pragmático e demoraria décadas para surtir efeitos, se surtisse, dependendo, dentre outros, do comportamento do mercado de trabalho. Enquanto a reforma demandada pelos interesses dominantes necessita de emendas constitucionais, uma justa reforma da previdência é simplesmente fazê-la operar efetivamente via arrecadação devida.
O Ministério do Trabalho e Previdência Social tem papel fundamental nessa disputa e pode se contrapor à visão hegemônica sobre a reforma, desde que altere os atuais caminhos da Secretaria de Inspeção do Trabalho, cuja direção precisa ser alterada, fortalecida e passar a seguir rumos que combatam a ilegalidade no mercado de trabalho brasileiro.
Notas:
[1] Pesquisador do CESIT (Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho do Instituto de Economia) da Unicamp, Auditor Fiscal do Trabalho.
[2] Professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do CESIT.
[3] Ver: http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/01/contas-do-governo-tem-rombo-recorde-de-r-1149-bilhoes-em-2015.html e http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2016/02/Beps122015_Final.pdf
[4] Ver, por exemplo, FAGNANI (2016). http://plataformapoliticasocial.com.br/a-previdencia-social-nao-tem-deficit/
[5]. FAGNANI, E; LUCIO, C.G; HENRIQUE, W. (2007). Previdência social: como incluir os excluídos? Uma agenda voltada para o desenvolvimento econômico com distribuição de renda. São Paulo: LTR, Debates Contemporâneos – Economia Social e do Trabalho, 4.
[6] Estimativa obtida a partir do número de empregados sem carteira constante na PNAD continuada de novembro de 2015, multiplicado pela renda total média (para um ano, incluindo 13º salário devido) desses trabalhadores e por 28% (soma da contribuição patronal e da faixa mais baixa de rendimentos dos trabalhadores).
[7] Ver: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,formalizacao-cresce–mas-quase-70-dos-domesticos-ainda-nao-tem-carteira-assinada,1683216
[8] 86% dos domésticos sem carteira assinada não contribuem para a Previdência (ver: Síntese de indicadores sociais : uma análise das condições de vida da população brasileira : 2015. – Rio de Janeiro : IBGE, 2015.). Mesmo os 14% que contribuem normalmente implicam arrecadação subestimada, já que não há recolhimento patronal.
[9] Ver, por exemplo, KREIN, J. D (2013). Tendências recentes nas relações de emprego no Brasil: 1990-2005. Campinas: Unicamp; FILGUEIRAS, V. A. (2012). Estado e direito do trabalho no Brasil: regulação do emprego entre 1988 e 2008. Tese de Doutorado. Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2012. Disponível em: www.ppgcs.ufba.br/site/db/trabalhos/2632013090916.pd.
[10] Como ocorre com empregados disfarçados de MEI. Dentre os muitos indícios da frequência desse procedimento, estão os seguintes fatos: mais de metade dos trabalhadores que se registraram como MEI, em 2012 e 2013, estavam ocupados, antes de se registrar como MEI, como empregados com ou sem carteira assinada. Grande parte trabalhava em setores com forte incidência de assalariamento disfarçado, como salões de beleza, construção, bares, lanchonetes e venda de cosméticos (ver: Perfil do microempreendedor individual 2013. SEBRAE, Estudos e Pesquisas). O comportamento da RAIS negativa após a regulamentação do MEI é outra pista interessante, já que a RAIS negativa crescia fortemente até 2009, quando praticamente estaciona, enquanto de 2009 a 2014 o número de MEI passou de 1 mil para mais de 4 milhões. Antes do MEI, o incremento da RAIS negativa era justamente relacionado à expansão da “pejotização”.
[11] Ver: http://portal.mte.gov.br/pontoeletronico/05-03-2010-empresas-brasileiras-podem-estar-deixando-de-pagar-r-20-3-bilhoes-em-horas-extras-por-ano.htm
[12] Para ilustrar, seguem duas notícias deste ano: 24 empresas de ônibus de Salvador devem “R$ 100 milhões em relação ao pagamento de horas extras, R$ 12 milhões sobre a quitação de férias”. http://www.bahianoticias.com.br/noticia/184906-empresas-de-onibus-de-salvador-sao-multadas-em-r-16-mi-por-irregularidades-trabalhistas.html. 40 empresas de “empresas de ônibus de BH devem R$ 100 milhões a empregados”. http://g1.globo.com/minas-gerais/noticia/2016/01/empresas-de-onibus-de-bh-devem-r-100-milhoes-empregados-diz-mpt.html.
[13] http://www.previdencia.gov.br/2015/09/saude-e-seguranca-indices-do-fap-com-vigencia-em-2016-estao-disponiveis-para-consulta/
[14] http://www.previdencia.gov.br/2015/12/seminario-aprimoramento-do-sat-e-discutido-durante-evento-internacional/30
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