Há pouco mais de um ano, o economista que ficou conhecido como o pior ministro da Educação da história brasileira, Abraham Weintraub, lançou o programa Future-se para as universidades e institutos federais. O evento com formato de Ted Talk empresarialanunciava com tom heroico a pretensa grandeza das suas inovações. No primeiro painel, um mapa do mundo se interligava por traçados reluzentes e depois pelos nomes de grandes marcas: “Google, Yahoo, Intel, Dell, Airbnb, Uber, Facebook. Muitas das maiores empresas do mundo nasceram em universidades. Essa é nossa inspiração. Esse é o futuro e o Brasil não vai ficar fora dele. É tempo de inovar”.
O excesso de brilho contrasta com nossas universidades sem recursos para pagar contas de luz, como a UFRJ e a UFRGS, nas quais o trabalho nos departamentos – por vezes ainda separados por paredes de amianto – se dedica a mediar brigas de docentes por quantidades de cargas didáticas, ou para direções e reitorias negociarem com estudantes o preço da bandejão ou as condições de moradia estudantil. A menção às empresas citadas, criadas em universidades cujo padrão é de difícil comparação com as nossas (como as privadas Stanford e Harvard), ou por milionários não concluintes de cursos de ensino superior, como o caso da Uber, já evidenciaria a inviabilidade desse “plano” nacional de universidade do futuro.
Evidenciaria, não fosse a adesão a outro tipo de meritocracia acadêmica, tão moderna quanto subserviente ao mercado, que menospreza a produção de certo tipo de conhecimento para abraçar a virulência das regras da concorrência. Sem esta, aliás, seria apenas curioso o fato de que a aplicação dos eixos mais fundamentais do programa esteja se dando em universidades para as quais o projeto não se dirigia.
É verdade que o Future-se foi amplamente rechaçado na ocasião, sendo retomado na forma de minuta de PL neste ano, com mudanças em relação às versões anteriores[1]. Mas isso não faz dele coisa do passado, tampouco se deve assumir que foi delineado apenas como um projeto para tramitar no parlamento. Nesse sentido, é urgente observar o alinhamento das mudanças em curso nas universidades estaduais paulistas com os princípios gerais do Future-se: há indicativos de que ele está sendo colocado em prática de maneira parcelada, mas acelerada e com debate bastante restrito durante a pandemia. Assim como os processos de privatização, a transformação da universidade pública em ativo financeiro pode começar em qualquer ponto, mas quando tais pontos se encontram pode ser tarde para voltar atrás. Vejamos.
“Fature-se” tornou-se rapidamente o apelido do programa, cujo pilar fundamental é a alteração do financiamento de parte estratégica das atividades das universidades públicas mediante a criação de fundos patrimoniais[2] e de fundos de investimentos. De acordo com o texto do programa, o fundo patrimonial seria composto por recursos decorrentes de prestação de serviços de pesquisas e consultorias, comercialização de bens, aplicações financeiras, ganhos de capital e rendimentos, direitos patrimoniais sobre imóveis e concessões, leis de incentivos fiscais, exploração de direitos de propriedade intelectual, mas também com doações privadas e matrículas e mensalidades em cursos de pós-graduação lato sensu.
Para gerir a captação e rendimentos desses fundos, bem como para fazer a gestão do empreendedorismo universitário, o programa previa a contratação de uma prestadora de serviços privada, uma organização social com ampla atuação – do ensino até o aprimoramento dos “modelos de negócios” de incubadoras e startups. Não significaria nada menos do que a terceirização da gestão das universidades. Na versão enviada ao Congresso, esse papel seria feito por fundações privadas, muitas já existentes nas instituições.
Para negar esse tipo de subserviência ao mercado, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras da educação de universidades e institutos federais se organizaram para discutir o programa que planejava se efetivar por adesão. Isto é, onde houve o mínimo de debate, o programa foi veementemente recusado.
A recusa se deu pela evidência de que a adesão significaria compactuar com o padrão já vigente de subfinanciamento estatal, aprofundando-o. A ampliação das desigualdades não seria menor do que a mudança completa das finalidades de uma formação universitária. Além do fato de ficar à deriva de investimentos de capitais e exposta a todo tipo de riscos, o que prejudicaria sobretudo as áreas de humanidades, que tendem a ser menos “atrativas” para essa lógica empresarial.
Pois bem. No dia 25 de junho de 2020 uma das manchetes do Valor Econômico dizia “Unesp e Unicamp criam fundos patrimoniais”. Nas palavras do reitor da Unesp, a criação de fundos neste momento é interessante “porque há uma percepção maior da sociedade sobre a importância da ciência, da necessidade de investimentos em pesquisa”. É pelo menos estranha tal percepção sobre o momento histórico nacional, no qual terraplanismo é levado a sério, que coachs motivacionais são contratados para fazer formação de professores das redes públicas básicas durante a pandemia, ou que mestres e doutores são demitidos em massa das faculdades privadas. Na mesma matéria, o diretor executivo da Agência de Inovação da Unicamp (Inova), responsável pelo fundo patrimonial da Unicamp, diz que “estima levantar aproximadamente R$ 100 milhões no prazo de cinco anos”, e que pretende investir em equipamentos, bolsas, pesquisas e startups. Já o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (IDIS), acha que a aproximação com o setor privado “vai trazer mais governança e profissionalização” da universidade.
Além da criação dos fundos de tipo endowment, que transforma nossos meios de trabalho em meios de extração de renda, a Unicamp também estuda como participar diretamente no capital de empresas, segundo se soube em matéria do G1 de 6 de junho de 2020. Após menção ao congelamento de salários e ao corte de gastos com a pandemia, a matéria diz que a instituição estaria mais atenta aos “movimentos da Bolsa de Valores e valorização do empreendedorismo realizado pela comunidade interna”. Para tanto, a universidade deverá se tornar cotista de investimentos em ações das “empresas-filhas” da Unicamp, de modo a se apropriar de maneira mais eficiente do que é produzido pela universidade. Em 10 de julho a Veja São Paulo noticiou que “no rastro da pandemia”, a universidade se prepararia para mais esta “modernização”: a criação de um departamento para lidar com doações privadas após a quarentena. Falta dizer quais são as contrapartidas.
A sabotagem do financiamento público às universidades públicas, recorrente na nossa história, intensificada no período neoliberal e catapultada pela EC 95, que congelou os investimentos em políticas sociais, cria terreno fértil para o avanço das tendências aqui apontadas. E tudo isso em nome da autonomia financeira e da sustentabilidade que, na verdade, não tem outro significado que a transformação da universidade em captadora de recursos, que podem ser também – irônica e tragicamente – oriundos de fontes estatais, mas mediados pela lógica da gestão e do interesse privado. Em linhas gerais, observa-se a própria metamorfose da universidade em uma organização social.
Ora, é preciso lembrar que há muito se naturalizou no âmbito das estaduais paulistas a prática privatista da cobrança por cursos e outras atividades feitas a título de extensão. Soma-se a isso, agora, os cursos pagos de pós-graduação lato sensu, aprovados pelo Conselho Universitário da Unicamp em junho deste ano, enfrentando pouca resistência, mesmo daqueles setores que se dizem críticos, mas que revelam, na prática, não representar perigo contra esse novo padrão de acumulação.
Cabe lembrar ainda do famigerado relatório Mckinsey da USP, programa traçado pela consultoria privada para modernização da Universidade de São Paulo com objetivo de torná-la celeiro de inovação, em parceria com proprietárias do grande capital como Coca-Cola, Rede Globo e General Motors. Além do endowment e da terceirização das “atividades-meio” da universidade, o projeto “USP do Futuro” propôs alocação de recursos maiores para unidades estratégicas e capazes de manter o padrão de excelência internacional, a captação de pelo menos 30% de recursos pela própria universidade “sustentável”, e cobrança de taxas, inclusive para permanência estudantil, como alugueis para moradia universitária.
Entre outras medidas, a consultoria propõe a diminuição da formação de mestres e doutores e a ampliação de pós-doutores. Não é por acaso que esse grupo altamente qualificado já está servindo como força de trabalho barata e precária, cumprindo outras alterações no sentido da produção de uma nova hierarquia e relações de trabalho. O Programa de Atração e Retenção de Talentos da USP (PART), por exemplo, previa contratar 250 pós-doutorandos e pós-doutorandas como docentes precários. Em 2020, a USP passou a “valorizá-los” com um salário bruto de R$ 1.279,15, mais auxílio alimentação no valor de R$ 870, em troca do trabalho na pesquisa e de até 6 horas-aula na graduação.
Não bastassem as perdas das últimas décadas e as reformas da Previdência e trabalhista, parcelas cada vez maiores das atividades-fim dessas instituições vêm acontecendo sob o marco de uma profunda e crescente precarização: formal, com a perda de direitos básicos, que modifica os níveis salariais, que intensifica o trabalho, que altera as perspectivas de formação continuada por meio de licenças para qualificação, entre outras; e também por seu caráter de informalização, como no caso dos professores bolsistas, sem vínculo empregatício e com salários inferiores aos dos concursados; ou pelo uso de força de trabalho de pós-graduandos em substituição ao trabalho docente regular em programas de “estágio”, em projetos de extensão atrelados a programas de bolsas socioeconômicas, entre outras. A “flexibilização” dos regimes de trabalho que previam dedicação integral e exclusiva, favorecida pelo arrocho salarial sistemático, amplia a desigualdade entre docentes.
Enfim, além de alterar os graus de desigualdade já existente entre docentes, ampliam-se as esferas da concorrência e se introduz essa relação mercantil como mecanismo de gestão. A prática de colocar uns contra os outros é meio para dissolver a solidariedade e a organização coletiva contra quem determina as regras do jogo. Com isso, é imposta uma concorrência em diferentes escalas: entre docentes, entre áreas de conhecimento, entre universidades. Em suma, uma universidade empreendedora requer empreendedorismo docente, e a captação de recursos privados atualiza de modo radical o publish or perish: empreenda ou desfaleça, adapte-se ou desapareça dos índices de produção acadêmica. Pois a avaliação da performance docente será medida pela capacidade de atrair investimentos, vender serviços e servir ao capital. A qualidade das atividades de ensino ou a relevância social de projetos de formação, pesquisa e extensão serão absolutamente irrelevantes nesse novo padrão de produtividade acadêmica.
E poucos serão os docentes beneficiados (“o professor universitário poderá ser muito rico”, dizia o Secretário de Educação Superior do MEC na apresentação do Future-se). Assim como serão poucas as universidades a alcançar a nova régua da meritocracia medida por um tal grau de simbiose com o grande capital. Algumas sobreviverão, ao passo que as demais ficarão no limbo da escassez dos investimentos estatais, reforçando tendências já conhecidas de hierarquização entre as instituições de ensino superior públicas. Editais recentes do CNPq, órgão com papel fundamental no financiamento da iniciação científica e da pós-graduação, não incluem as ciências humanas entre as áreas “prioritárias” e “estratégicas” de pesquisa.
Sempre apresentada como novidade, a promessa dessa simbiose entre universidade e empresa, nacionais e estrangeiras, aponta antes para projetos hegemônicos das classes dominantes periféricas: sua adesão mimética ao padrão educacional dos países centrais não consegue esconder que por trás dos apelos por uma universidade “moderna”, financiada com dinheiro privado ou por uma espécie de “filantropismo de luxo”, está justamente o interesse pelo desfinanciamento e pelo desmonte da pesquisa científica e tecnológica de base e de interesse social, que em qualquer parte do mundo dependem do financiamento público.
As mudanças em curso nas estaduais paulistas demonstram que papel o Future-se cumpre no interior de uma estratégia ampla de mudança radical no padrão de financiamento, na forma de gestão e de realização do trabalho docente de toda a educação superior. Mostra também que aquele ministro – um economista incapaz de preparar uma aula de porcentagem – cumpriu um papel bem traçado por quem entende do assunto de transformar a educação em ativo financeiro.
Mas a disputa de projetos universitários não está vencida. É necessário se contrapor a esse projeto que se sustenta na precarização do ensino e do trabalho, na divisão entre nós, bem como na interdição da produção de conhecimentos e de práticas de ensino, pesquisa e extensão voltadas ao combate das desigualdades sociais. Esse é um dos maiores e talvez mais definitivos ataques desferidos contra a autonomia universitária, pois ao se voltar completamente aos interesses de empresários e investidores, a universidade toma uma posição que fecha o espaço para processos voltados aos interesses populares, de trabalhadores e trabalhadoras, das periferias, de povos, raças e etnias, todos vilipendiados pela violência estatal, expropriação e opressão econômica.
Mas, contra o imperativo de subserviência completa ao capital, há sempre aqueles e aquelas que sabem que vale a pena lutar. E não se acovardam diante do poder de convencimento do projeto em vias de se consolidar. O poder que captura pelos extratos bancários ganha mais adeptos em períodos de desfalecimento de projetos de formação e crise de princípios políticos, como hoje. Afinal, para que serve nosso trabalho na universidade?
Carolina Catini e Lalo Watanabe Minto, Faculdade de Educação da Unicamp e do Grupo de Estudos e Pesquisas Educação e Crítica Social (Gepecs).
[1] Ver Roberto Leher, Future-se leva adiante política de supressão da autonomia universitária, Le Monde Diplomatique Brasil, 11 fev. 2020.
[2] Ver Otaviano Helene, Fundo patrimonial: o que é isso?, Jornal da USP, 13 dez. 2018;
Um imperativo do presente: Future-se nas estaduais de SP?
por Carolina Catini e Lalo Watanabe Minto – publicado originalmente em 4 de agosto de 2020, no Lemonde Diplomatique Brasil
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