A questão da permanência e da saúde mental de estudantes indígenas na Unicamp aponta para a urgência de que a Universidade compreenda e se abra para o significado de “território”, que hoje está na essência das lutas das populações originárias. O território, para elas, vai muito além da geografia, da terra e das coisas, envolve a vida dos animais e plantas que vivem ali, mas principalmente as pessoas que o habitam, seu modo de vida e a complexidade de sua cultura e ancestralidade. Ao compreender e se abrir para isso, não só estudantes indígenas, mas toda a comunidade acadêmica terá ganhos imensos de conhecimento e convivência.
Essa conclusão perpassou os depoimentos de todos/as palestrantes que falaram durante o encontro “Bem-Viver, Permanência e Território dos(as) estudantes indígenas na Unicamp”, realizado nesta segunda-feira, 17 de abril, pela ADunicamp em parceria com a Caiapi (Comissão Assessora para Inclusão Acadêmica e Participação dos Povos Indígenas), órgão ligado à DeDH (Diretoria Executiva de Direitos Humanos) da Universidade.
A mesa de discussões do encontro, intitulada “O bem-viver e os sentidos de saúde mental para os estudantes indígenas”, foi precedida pelo “Show Confluências”, que apresentou, entre outras, canções de artistas estudantes indígenas da Unicamp. A mesa foi composta pela professora Vanessa Louise Batista, do Departamento de Fundamentos da Educação da UFC; Kellen Natalice Vilharva Guarani Kaiowá, doutoranda em Farmácia pela Unicamp; pelo professor Danilo Silva Guimarães, do Departamento de Psicologia Experimental do Instituto de Psicologia da USP e Leandro Karaí Mirim, estudante de pós-graduação em Psicologia Experimental pela USP.
A professora Verônica Fabrini (IA), do Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena da Unicamp, que mediou o encontro, lembrou que os repetidos casos de abandono dos estudos por estudantes indígena, que se revelaram de forma aguda na pandemia, passaram a exigir um olhar mais próximo e apurado da Universidade para essa comunidade.
E, para Verônica, os encontros e reuniões que têm sido realizados, desde então, para tratar da saúde mental de estudantes indígenas mostraram que “não são eles e elas que estão doentes, mas toda a Universidade”. A cultura dos povos indígenas, lembrou ela, está ancorada num outro universo afetivo e solidário, numa espiritualidade totalmente diversa daquela que encontram no dia a dia da Universidade, altamente ancorada no individualismo e na competitividade.
“A pergunta fundamental que temos que fazer ao tratar da questão da permanência é: ‘Você está se sentindo bem?’ E a resposta nos mostra que o que estamos localizando aqui não é um problema deles e delas. Conseguimos ver o quanto a Universidade está mal, está doente quando se trata dessas coisas do convívio, do afeto, a dimensão da espiritualidade e da alegria. A Universidade não tem espaço para isso e isso adoece mais eles e elas porque sabem o quanto isso é importante, faz parte do território que habita neles. Será que não temos o que aprender deles nessa dimensão do afeto, da alegria e da espiritualidade? Nos acostumamos a colocar a subjetividade, a dimensão interior, como uma coisa menor. E temos que refletir sobre isso”, avaliou a professora.
OUTRA REALIDADE
Kellen, da etnia Kaiowá, a primeira palestrante da noite, relatou sobre o convívio no território, ou “espaço” como ela chamou, das aldeias. “O espaço é o lugar onde a gente pode viver o nosso modo de ser e de existir. É mais amplo que a terra geográfica, pois temos a mata, os montes, a floresta e, para nós, há em tudo trocas harmônicas de energia e afeto. Vivemos a coletividade, a reciprocidade, a amizade, a relação fraterna. Então como vamos falar em bem viver se não temos nem as nossas terras? Como falar em bem viver dentro da Universidade onde a burocracia, a formalidade acaba nos adoecendo?”
Kellen antecipou uma questão que, logo em seguida ao longo dos debates, seria amplamente tratada no encontro. “Nós sabemos que esta semana vai ter rituais, festa, dança e comida nas nossas aldeias. Então é triste para a gente que está longe, a gente não tem espaço aqui, na Universidade, nem em Barão Geraldo, na cidade, para trazer e viver um pouco da nossa vida, da nossa realidade. Como falar em bem viver se ficamos isolados, como na pandemia, se não temos espaço para nossos eventos?”, questionou ela.
Leandro Karaí, que falou em seguida, afirmou que mesmo as práticas cotidianas chocam estudantes indígenas quando chegam à Universidade. “O formato hierarquizado, como das salas de aula e mesmo desse auditório que estamos agora, e que está assim há séculos, não faz parte do nosso cotidiano nas aldeias. A gente se reúne em rodas, sem hierarquia”.
Numa dimensão mais profunda, apontou Leandro, o conhecimento acadêmico ocidental ignorou e ignora o conhecimento dos povos indígenas. “A Psicologia, meu campo de trabalho, vem se constituindo ao longo dos tempos sem o nosso corpo indígena. Vários países pensam em formatar o pensamento humano. E o pensam como se fosse uma espécie de religião. Querem saber como é o funcionamento do pensamento humano, mas ignoram o conhecimento indígena. Vemos essa permanente disputa de espaço, nas estradas ou nos rios, os carros brigando por espaço. Então a psicologia acabou fazendo esse caminho do conhecimento, institucionalizou esse conhecimento. E a psicologia indígena não veio, mas existe.”
Nas chamadas “casas de reza” de suas aldeias são realizadas também as sessões de cura. “A gente ali não precisa muito para fazer uma cura. Não precisa de um divã. A conecção com as ervas, por exemplo, mas especialmente através do diálogo, é que abre o caminho da cura. Aprendemos a ouvir realmente o nosso coração, além da cabeça. E é para isso que as pessoas têm que se unir, têm que cantar.”
A psicologia indígena, segundo Leandro, oferece caminhos “que muitas vezes não são estradas, são trilhas”, que são passadas pelos anciãos. “Não existem livros, são eles que passam para nós e são livros vivos que muitas vezes não encontramos mais. A universidade tem muito conhecimento, mas nem sempre tem sabedoria. O conhecimento do pertencimento, a sabedoria da nossa cura, da nossa saúde. Na nossa comunidade a gente tem isso, de ouvir sempre quem veio antes, de ouvir quem está ao lado.” E isso, para ele, estabelece uma outra dimensão para se compreender e formatar uma psicologia indígena.
ABRIR O TERRITÓRIO
O professor Danilo descreveu a profunda sensação de “inadequação” que indígenas sentem quando confrontados com a forma de vida das populações urbanas. Mesmo ele, apenas nascido em aldeia, mas que cresceu no meio urbano, diz ter vivido essa permanente “sensação de inadequação”, até reencontrar, já estudante universitário, o convívio com indígenas em aldeias guaranis paulistas. A própria escolha da Psicologia foi, segundo ele, uma busca para o entendimento dessa “sensação de inadequação”.
Foi só após descobrir a Antropologia e se aprofundar na cultura indígena e, a partir daí, encontrar o convívio em aldeias, que Danilo diz ter superado a sensação que o acompanhara por toda a vida. O aprendizado do saber indígena e da vida nas aldeias foi também um caminho de mão dupla. “Pesquisadores/as costumam ir às aldeias, construir seu trabalho e suas teses, avançar em suas carreiras e nunca mais voltar, nunca dar retorno. A ponto das próprias lideranças indígenas me dizerem: ‘Estamos cansados de pesquisadores. Não queremos mais pesquisadores’. Então eu comecei a desenvolver projetos que devolvessem para comunidade indígena aquilo que levaram da aldeia.”
Foi a partir daí que começou a ser esboçado o projeto da Rede de Atenção à Pessoa Indígena, criada em 2012. E também a proposta da construção no campus da USP da Casa de Culturas Indígenas.
Danilo relatou as importantes mudanças que se percebe hoje no comportamento e no bem-estar de estudantes indígenas da USP, depois que foi criada a Casa, um espaço para eles se reunirem e realizarem as mais diversas práticas de convívio de suas aldeias. “A Casa é um grande espaço para se sentirem bem, realizarem encontros de parentes das diferentes etnias.”
A Rede de Atenção realizou, em 2022, 350 atendimentos psicoterapêuticos a pessoas indígenas. “Temos 10 pessoas atendendo, mas é importante que essas pessoas também conheçam e vivam nas aldeias e sintam a diferença. É só assim que podemos saber o que é realmente o sofrimento dos indígenas quando tentam se encaixar nos paradigmas das teorias enrijecidas da psicologia formada na Europa e Estados Unidos.”
Ações como essas, na avaliação do professor, são essenciais para apoiar o bem-estar e a permanência de comunidades indígenas nas universidades. “Os conjuntos de ritos e rituais acadêmicos que nos impõem aqui, conflitam com os rituais que nos ensinam nas aldeias. Quando saímos do território da universidade de volta para nossa comunidade temos que nos despir dos rituais acadêmicos. Isso exige toda uma regulação do corpo e dos sentimentos. Quando a gente vem de uma aldeia para uma universidade, às vezes dá mesmo vontade de largar tudo, voltar para o mato.”
Mas, falando para estudantes indígenas que lotaram o Auditório da ADunicamp durante o encontro, o professor alertou: “Mas estar na universidade agora é também uma forma de criarmos caminhos para que outras pessoas indígenas que venham para cá também se sintam bem melhores. Que a gente possa transformar a universidade para que os que vierem depois se sintam melhores do que vocês se sentem.”
PRECONCEITOS
A professora Vanessa, que participou do encontro de forma online, também relatou os conflitos de estudantes indígenas com a vida acadêmica, que passaram a ser tratados com maior atenção só após a pandemia, quando eles se tornaram muito evidentes na Universidade Federal do Ceará, onde ela leciona.
Ela, na verdade, já trabalha há anos com as questões da cultura e da vida indígenas. Conviveu em aldeias guaranis em São Paulo, quando buscava as suas raízes indígenas próximas, vindas de sua bisavó, e mais tarde também em aldeias de outras etnias.
“Durante a pandemia começamos a aprofundar quais os interesses de estudo e os conflitos dos nossos estudantes indígenas e começaram a aparecer muito as dificuldades, as dificuldades que têm de viver na universidade. Então temos essa questão das incongruências, das contradições, do contraste. Digo principalmente do contraste porque ficava muito evidente as diferenças na forma de pensar. Indígenas que ali chegavam não se reconheciam, mas logo vimos que a dificuldade estava muito mais ligada aos próprios docentes e colegas que não entendiam e não reconheciam a diferença. Uma diferença que se expressa não só na língua, mas até em perguntas e conclusões sobre questões muito práticas, como os experimentos em laboratórios. Não entendiam que eles precisavam conversar sobre aqueles modos que são muito comuns na academia, mas são totalmente contrastantes com a vida indígena.”
E o desconhecimento dos contrastes acaba sempre se manifestando na forma de preconceito. E como indígenas ainda são uma pequena minoria na academia, o resultado da percepção desses contrastes e do preconceito leva a que percam a sensação de que têm importância. “Já estavam em situação difícil, vivendo no mundo urbano em comunidades pauperizadas. Então compreendemos que esse sentimento de reconhecimento de si mesmos é um primeiro passo para se dar.”
E a compreensão do sentimento de território para as comunidades indígenas também tem que estar, para a professora, nesse primeiro passo a ser dado. “Muito do sofrimento que eu pude ver estava ligando a esse distanciamento do território e também o temor de perder a capacidade de sonhar com seu território com seu enraizamento na cultura indígena.”
Para indígenas, o território é a organização no espaço total, um espaço de comunhão. Já a forma como o território ocidental se organiza “retira a nossa sensibilidade, nos tira da terra, evoca o individualismo, competividade extrema, desvinculação com a natureza”.
CONFLUÊNCIAS
O “Show Confluências”, que abriu o encontro, foi comandando pelo músico e compositor João Arruda, com participação de três estudantes indígenas da Unicamp: Verinha Tukano, de História; Lilly Baniwa, das Artes Cênicas; e Leandro Silveira Tupã, da Pedagogia.
FOTOS
Paula Vianna/ADunicamp
ADunicamp
[…] No dia anterior, 17 de abril, foi promovido o encontro “Bem-Viver, Permanência e Território dos(… O documentário foi exibido também na cidade de Limeira, onde há muitos/as estudantes indígenas, no Cine Vagalume, sala de cinema da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, onde também ocorreu uma roda de conversa com o professor Rodrigo Ribeiro (Direitos Indígenas) e Luiz Felipe Medina (graduando de Administração Pública), mediada pela professora Josely Rimoli (FCA). […]