“O objetivo deste projeto da Reforma da Previdência é acabar com a Seguridade Social conquistada no Brasil em 1988, no período de redemocratização do país”. Com essa avaliação incisiva, o professor Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia da Unicamp, abriu o debate “Nova Previdência ou o Fim da Previdência?”, realizado no auditório da ADunicamp.
O debate, mediado pela professora do IMECC e diretora da ADunicamp Verónica Gonzáles-Lopez, teve também a participação do advogado Nilo Beiro e do dirigente da CUT (Central Única dos Trabalhadores) João Cayres.
O sistema brasileiro de seguridade social, lembrou Fagnani, é composto no Brasil pelo SUS (Sistema Único de Saúde), pelo seguro desemprego, pelo BPC (Benefício da Prestação Continuada) – que beneficia idosos e deficientes físicos – e pelas previdências urbana e rural. “Mais de 70% dos brasileiros só têm o SUS como porta de entrada para a assistência à saúde”, apontou. Já o seguro desemprego beneficia cerca de sete milhões de trabalhadores e o BPC outros cinco milhões, enquanto a previdência urbana atende 20 milhões de aposentados e a rural 10 milhões.
“No total, são cerca de 42 milhões de benefícios. Se cada pessoa tiver dois membros na família, eu estou falando em 120 milhões de pessoas. E, deste total, 70% recebem apenas o piso do salário mínimo”, mostrou.
Assim, na avaliação do professor, o desmonte da seguridade social, como está proposto no projeto de reforma da previdência em tramitação no Congresso Nacional trará impactos profundos na vida do país. “A previdência rural e a prestação continuada reduziram o êxodo rural no Brasil, reduziram o êxodo do Nordeste para o Sul. E entre 70% a 80% dos municípios brasileiros a transferência dos recursos da previdência é maior que os recursos transferidos pelo fundo de participação municipal”, relatou Fagnani.
O atual projeto de reforma vai afetar decisivamente a situação dos idosos em todo o país. “Hoje no Brasil, a pobreza entre os idosos é de cerca de 2% a 3%. Estudos recentes do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que sem a previdência a pobreza atingiria 70% da população idosa”, afirmou.
Fagnani comparou o projeto de reforma brasileiro com reformas feitas em outros países. E conclui: “Reformas da previdência são necessárias e são feitas em todos os lugares do mundo, porque você tem que ajustar a expansão demográfica às regras do sistema. Países sérios, civilizados, desenvolvidos já fizeram suas reformas da previdência e estão fazendo a todo o momento. Mas eles não destroem o seu sistema de proteção social, porque sabem que é importante para o combate à desigualdade”.
A FALSA CRISE
Fagnani mostrou que a propalada crise da previdência é uma falsa crise e que os recursos que garantem a seguridade social não são o principal problema para o ajuste fiscal que o governo pretende impor. “O problema no Brasil é que não há um diagnóstico da questão. Eu garanto para vocês que nos últimos 30 anos há mais de uma dezena de emendas constitucionais alterando a previdência social. No regime geral da previdência, o do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), nesse que há cerca de 20 milhões de pessoas recebendo um salário mínimo por mês, não há nada o que fazer, não é necessário fazer nada, além de alguns ajustes pontuais, não há necessidade de uma reforma geral. Eu garanto para vocês”, argumentou.
Com a criação do fundo de previdência complementar, em 2012, com teto de 5,8 mil reais, a questão da aposentadoria do servidor público federal também foi resolvida. “E ele vai se aposentar em 2050. Então o problema do funcionário público federal, no futuro – e você faz reforma pensando no futuro – também está resolvido”.
O problema da previdência, na avaliação de Fagnani, reside hoje apenas “no estoque dos servidores federais, nos militares – que estão fora da reforma – e nos servidores estaduais. “Esse é o problema da previdência. Portanto, não vejo menor sentido em mexer no regime geral e nem no BPC”, disse.
Para o sindicalista João Cayres, criou-se através da propaganda e da mídia o “falso consenso” de que a “previdência está quebrada”. “O sistema de previdência foi montado com a participação de todos os setores da sociedade. Os empresários, os trabalhadores que contribuem e o Estado. Ele é sustentado a partir de impostos como o PIS, COFINS e a CPMF; parte do dinheiro da Mega Sena e dos jogos da Caixa também vão para o sistema de seguridade e previdência”, apontou Cayres.
O que acontece, relatou o sindicalista, é que desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, com a criação DRU (Desvinculação de Recursos da União), o dinheiro do caixa da previdência passou a ser desviado para cobrir outras despesas orçamentárias. “Nada contra essa flexibilidade do governo usar recursos para investir em outras prioridades. Só que o dinheiro tem que voltar. Mas não é isso que acontece. No governo Temer, a desvinculação passou de 20% a 30%. Então aí o déficit da previdência passou a ser ainda mais pesado”, diz.
Para Fagnani a questão da previdência, como tem sido colocada hoje, não é técnica, mas ideológica. “Ninguém quer discutir tecnicamente ou fazer um debate qualificado de ideias. Se fizermos um debate qualificado, todos os argumentos usados para essa reforma seriam derrubados. Porque não tem o que os sustenta”, desafiou. As elites econômicas e as oligarquias políticas sempre se opuseram, desde de 1988, ao estado de bem estar social proposto pela Constituição. “E não há nada de revolucionário nela. Ela apenas se baseia nas socialdemocracias europeias. O que essa reforma pretende é destruir o pacto social de 1988”.
VITÓRIA RENTISTA
Na mesma direção, o advogado Nilo Beiro, que integra a Assessoria Jurídica da ADunicamp, a reforma da previdência não é uma reforma isolada. “Ela anda junto com outras reformas. Nós tivemos recentemente, dentro desta mesma linha, a emenda constitucional que trata do congelamento dos gastos públicos, que congela por 20 anos qualquer tipo de aumento de gastos públicos. Temos a lei que trata da terceirização e, na mesma linha também, com muita ênfase, a reforma trabalhista. Essas três medidas, junto com a reforma da Previdência andam juntas e têm objetivos muito semelhantes”.
Na avaliação de Beiro, todas elas trazem uma diminuição ou uma dificuldade da população ao acesso a direitos históricos. “E todas elas trazem também, a proteção do capital, sem a menor dúvida”.
Ironicamente, para Beiro, a reforma da previdência “é até que democrática”. “Isso porque ela atinge a todos. Todos perdem, menos dois: os capitalistas e os rentistas, que não perdem de maneira nenhuma. E quem menos perde, em especial, é a banca, o sistema financeiro, que é o principal beneficiário, o grande vencedor desta história toda”.
O sistema financeiro ganha em todas as pontas, primeiro porque a grande justificativa para a reforma é o ajuste fiscal. “O ajuste fiscal sem mexer nos juros garante que haverá sobra de recursos para que seja feito o pagamento dos juros na mesma medida que é feito hoje, quiçá até em medida maior”. Mas o maior ganho, na outra ponta, virá com a privatização da previdência, que cairá inevitavelmente na mão dos bancos, com a implantação do sistema de capitalização.
TRAGÉDIA NA VELHICE
Beiro, Fagnani e João Cayres foram unânimes na avaliação de que o sistema de capitalização irá provocar uma verdadeira tragédia na futura população idosa do país. Para todos eles, o exemplo mais próximo de nós, o do Chile, mostra a extensão a que pode chegar a tragédia. Lá, com o sistema de capitalização implantado com ajuda do atual ministro brasileiro da Economia, Paulo Guedes, durante a ditadura do general Augusto Pinochet, o número de suicídios de idosos aumenta de ano para ano e está entre os mais altos do mundo.
Mas não é só lá. Cayres mostrou que o modelo de capitalização, que “foi moda a partir dos anos 1980 até anos 2000”, está sendo derrubado no mundo todo. “A OIT (Organização Internacional do Trabalho) acaba de fazer um estudo que mostra que dos 30 países que fizeram essa capitalização, 18 já estão revertendo, e com um prejuízo tremendo. Estão revertendo porque viram que esse negócio não funciona mesmo”, disse. “Na capitalização, paga quem pode e morre quem não pode pagar. É o modelo norte-americano. Eu faço parte do comitê mundial de trabalhadores Ford e uma vez por ano vou ao aos EUA. E o que a gente sempre percebe lá e que tem muitos idosos pedintes e o número deles aumentou de ano para ano”.
Beiro lembrou que, embora seja apresentado como “uma opção”, será inevitável a generalização do modelo de capitalização. “Com o FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) aconteceu a mesma coisa. Ele foi criado durante a ditadura militar para substituir a então famosa estabilidade decenal”, lembrou o advogado. A estabilidade decenal garantia que, após dez anos no mesmo emprego, o trabalhador só podia ser demitido por justa causa. “Só que com a introdução do FGTS, ninguém mais foi contratado se não assinasse a ficha de opção. Com a capitalização, ocorrerá o mesmo”.
As regras do atual projeto de reforma são tão excludentes, na avaliação de Fagnani, “que as pessoas não terão outra alternativa a não ser recorrer para a assistência social” no futuro. “Assim, como eles já estão vendo isso, eles constroem um muro: falam que o BPC vai ser de 400 reais. A outra transição vai ser da seguridade social para o seguro social, onde a responsabilidade é do indivíduo. O indivíduo vai fazer um contrato individual com um fundo de pensão, no qual ele vai ter que contribuir durante X anos e só vai ter direito se pagar. O seguro social é isso: só vai receber, só estará protegido, quem paga”, apontou.
FORA DA CONSTITUIÇÃO
Um dos grandes problemas do atual projeto de reforma, na avaliação dos conferencistas, é a desconstitucionalização da questão previdenciária e da seguridade social. Com a eventual aprovação da proposta, novas mudanças na previdência não precisarão mais ser feitas mais por emendas constitucionais, mas sim por leis ordinárias.
“Com isso, a reforma dá uma carta em branco, ela delega para que uma lei complementar estabeleça os direitos e todos os regulamentos possíveis e imagináveis sobre a Previdência. Hoje os grandes direitos estão estabelecidos na Constituição. E para mudar a Constituição, uma emenda precisa de três quintos dos votos para ser aprovada no Congresso. Já uma lei complementar precisa apenas de maioria absoluta, 50% mais um voto. Pode ser que a lei complementar vai estabelecer que a idade mínima para aposentadoria é 90 anos, por exemplo. E não vai haver nenhuma barreira constitucional que impeça isso”, apontou Beiro.
Assista a íntegra do debate no player abaixo
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