Em setembro de 2013, o professor Hélio Lemos Sôlha (foto), do Departamento de Multimeios do Instituto de Artes da Unicamp, apresentou no I Colóquio Internacional Arrogância uma longa reflexão sobre o papel dos meios de comunicação nas manifestações de rua iniciadas em junho daquele ano.
Recentemente, após as manifestações de 15 de março, o texto de Sôlha voltou a ser discutido, comentado e ganhou destaque em sites e redes sociais. O ponto de partida da reflexão é, nas palavras dele, “o comportamento arrogante da media contemporânea, em suas diversas manifestações”.
O texto de Sôlha adquire importância para compreender também as manifestações de 15 de março diante do papel assumido pela mídia agora, assim como ocorreu em 2013. “Qual a origem de tamanho poder, o que sustenta a arrogância que legitima a media a pautar toda uma sociedade? A resposta certamente não é simples e a origem desta legitimidade é múltipla e complexa. Mas é preciso que entendamos a natureza social dos empreendimentos mediáticos, cuja realidade está sempre nublada pelo foco analítico nos seus conteúdos (…).É necessária, portanto, uma mudança no olhar sobre a media se quisermos compreender a sua forma de atuação na sociedade e o significado dessas ações”, arguimenta Sôlha.
O I Colóquio Internacional Arrogância foi promovido pela Université de Bordeaux/Grupo Cosmopolita/CNRS e ocorreu na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e, logo depois, o texto apresentado por Sôlha foi publicado no site Observatório de Imprensa.
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ECOS DOS PROTESTOS
‘Media’ e as manifestações de junho: controle e disputa
Por Hélio Lemos Sôlha
O texto a seguir ensaia uma reflexão sobre o papel da media na sociedade brasileira contemporânea, tendo como ponto de ancoragem a arrogância, em diferentes formas, com que vem lidando com os movimentos de rua, iniciados em junho deste ano.
Na perspectiva do tema proposto para este colóquio, a arrogância, esta intervenção buscará tratar do comportamento arrogante da media contemporânea, em suas diversas manifestações. Para tanto, buscaremos olhar para o tratamento dado por ela às “Jornadas de Junho”, como alguns sociólogos têm se referido à multidão de brasileiros, em sua maioria jovens, que tomou em protesto a praça pública. O nome, “Jornadas de Junho”, tem aqui um sentido designativo provisório, posto que sequer se pode afirmar estar circunscrito àquele momento. Longe de tentar explicar as Jornadas, tarefa deixada para os especialistas em movimentos sociais, trataremos do comportamento da media brasileira em relação a estas Jornadas, onde assumiu uma atitude didática e esclarecedora sobre o seu papel na sociedade e das transformações deste papel, em virtude das tensões internas, impostas pelo processo de convergência digital.
As Jornadas de Junho foram precedidas de inúmeras manifestações de protesto que, pelo mundo, partiram do Oriente Médio e caminharam para os EUA e Europa. Embora motivações nacionais e regionais tenham sido bastante diversificadas, todos esses movimentos sociais guardam fortes semelhanças nas suas formas de organização e nas táticas, das quais devem ser destacadas: a negação da representação política tradicional, um forte questionamento das instituições tradicionalmente tidas como democráticas, a heterogenia das pautas de protesto e o uso intensivo das ferramentas cibernéticas na autoconvocação dos protestos. Também a media mundial vem se comportando de forma bastante uniforme. Noticiando os eventos árabes, nota-se uma permanente esperança na ocidentalização política e cultural daqueles países, destacando-se uma certa euforia do papel das chamadas “redes sociais” e a liberdade digital na configuração de uma nova forma de organização política. Sobre os protestos nos países centrais, os veículos tratam os mesmos tipos de ações e ferramentas sob uma dura crítica e notável desconfiança.
Internet serviu como espelho
No final de 2010, um jovem desempregado tunisiano, em protesto contra as condições em que vivia no país, ateou fogo ao próprio corpo, desencadeando, inadvertidamente uma incontrolável onda de protestos na Tunísia, que rapidamente se alastrou por outros países do norte da África, com consequências políticas de todo imprevistas. Assumindo um discurso hegemonizado por interesses internacionais, a media imediatamente adotou, aludindo ao processo de reformas liberalizantes da Tchecoslováquia dos anos 60, o nome de “Primavera Árabe”. Esta “primavera” das liberdades políticas – que, de resto, não são mais ainda do que promessas – foi intensamente atribuída às facilidades comunicativas da internet. De fato, através do uso de ferramentas conhecidas como “redes sociais” (Facebook, Twiter etc.), as pessoas rapidamente tomaram conhecimento dos fatos, foram mobilizadas e ocuparam as ruas. Em dezembro de 2011, o jornal diário O Estado de S.Paulo publicava artigo do jornalista João Coscelli, com o sugestivo título de “A revolução será twittada”, onde afirmava:
“A chamada Primavera Árabe mudou o cenário geopolítico no Oriente Médio e no norte da África e a internet, afirmam analistas, teve um papel fundamental na consolidação do movimento. Foi por meio das redes sociais – como o Facebook, o Twitter e o YouTube – que a juventude organizou e espalhou informações sobre protestos, ainda que em alguns casos as comunicações estivessem sob controle do regime”.
Uma euforia noticiosa apontava as virtudes democráticas das tecnologias propiciadas pelo mundo liberal, como se fosse o corolário da própria ideia de liberdade. Falar do potencial da Internet para romper o silêncio imposto por regimes autoritários fortalecia, naquele momento, o intenso movimento da mediana sua autodefesa das liberdades de expressão e de imprensa. Amorfamente mediática, a internet serviu como espelho para os meios de comunicação, ao mesmo tempo em que fazia vazar detalhes dos acontecimentos, que alimentavam diariamente os veículos jornalísticos.
A legitimidade da luta
Por outro lado, inspirados por este cenário de mobilização popular, vários outros movimentos foram surgindo pelo mundo, utilizando-se das mesmas ferramentas, mas atingindo insuspeitos países ocidentais democráticos e de economias liberais. “Occupy Wall Street” rapidamente ganhou dimensão global e colocou no centro da cena dos protestos as estruturas político-econômicas de atores nacionais como os EUA, a Grã-Bretanha e a Alemanha. Os manifestantes ressaltavam, como nos casos do Oriente Médio, a importância das ferramentas da internet para a mobilização das pessoas, fato que a media tampouco deixou de destacar.
Entretanto, Occupy não fazia apenas a apologia da eficácia comunicativa das tecnologias digitais ao colocar o uso das redes sociais como instrumento fundamental do movimento. Muito mais do que isto, acusava a media de ser subserviente aos poderosos interesses de corporações e governos, denunciando uma censura intrínseca ao funcionamento dos meios tradicionais, justificando o destaque dado à produção própria da informação noticiosa e de sua distribuição pela Internet. De seu lado, TVs, jornais e revistas tradicionais logo enchem as pautas de argumentos demonstrativos das profundas diferenças entre os dois tipos de protestos, ignorando as críticas e reafirmando o fazer político ocidental, as instituições nacionais, o livre mercado e a própria media, como modelo universal de sociedades sadias. Não havendo um ditador a ser nominado, os protestos seriam inconsistentes, destituídos de qualquer coerência e vigor revolucionário, como bem exemplifica o trecho, abaixo, do artigo da jornalista Anne Applebaum, “O que os protestos Occupy nos contam sobre os limites da democracia”, publicado na edição de 17 de outubro de 2011 do jornal Washington Post:
“(…) Em Nova York, manifestantes gritavam: “Isto é o que a democracia parece”, mas, na verdade, não é isto que a democracia parece. Isto é o que a liberdade de expressão parece. A democracia parece muito mais chata. A democracia exige que as instituições, eleições, partidos políticos, regras, leis, um sistema judiciário e muitas atividades, que consomem tempo sem glamour, nenhuma das quais é tão divertida quanto acampar em frente à Catedral de St. Paul ou cantar slogans na rua Saint-Martin, em Paris”.
A crítica ao compromisso da media com o status quo é respondida por um conjunto de declarações de princípios, que resvalam discretamente na questão e reafirmam a posição de autodefesa mediática: liberdade de expressão. Liberdade coexistente com o livre mercado, com a sociedade de consumo massivo, que contrasta a diversão popular de manifestar-se em países principisticamente declarados democráticos com a legitimidade da luta pela “primavera” política naqueles lugares onde nem o capital, nem as palavras podem fluir livremente.
Media constrói as pautas
“Ao contrário dos egípcios na Praça Tahrir, a quem os manifestantes de Londres e Nova York abertamente (e ridiculamente) se comparam, temos instituições democráticas no mundo ocidental”, afirma Applebaum, em seu artigo, um pouco mais adiante. Simples assim, onde há democracia, há instituições que defendem, honesta e corretamente, os interesses do povo – e a própria media seria uma delas. No “mundo ocidental”, como afirmou a jornalista, as coisas são assim. Portanto, tumultuar a tranquilidade das ruas com críticas a estas instituições, buscando, ainda, a identidade com as lutas da Primavera Árabe, não passa de uma atitude “ridícula”. A contradição da arrogante afirmação é sutil, pois desqualifica a manifestação justamente por existir liberdade para exercê-la. Subtrai-se o debate no júbilo à liberdade de debater; reduz-se a liberdade de expressão a uma declaração simplista e autônoma. Destituída de sua complexidade social e histórica, a defesa da liberdade de expressão torna-se fórmula de uma democracia tão fundamentalista quanto qualquer outro tipo de explicação baseado exclusivamente na fé.
Entre os dias 6 e 20 de junho, multidões de jovens invadem as ruas das maiores cidades brasileiras em protesto. Inicialmente convocados ciberneticamente pela ONG “Movimento Passe Livre” (MPL), em protesto contra o aumento das passagens do transporte coletivo, as manifestações, fortemente reprimidas pelas polícias militares estaduais, rapidamente incorporaram bandeiras políticas diversificadas, exprimindo diferentes insatisfações populares.
Praticamente ignoradas pela imprensa tradicional brasileira, que centrava os seus destaques noticiosos nos episódios do Oriente Médio, muitas manifestações de protesto vinham sendo organizadas pelo país desde 2011, com a força comunicativa concentrada nas Redes Sociais da Internet. No início de 2013 os atos ganham maior fôlego, atingindo o ápice nas manifestações de junho, logrando, consequentemente, uma maior visibilidade mediática. Uma certa tensão competitiva se instala entre os tradicionais jornais, TVs rádios e revistas e os atores cibernéticos: blogueiros, coletivos de criação digital e de difusão internética, sites de agitação cultural e política de diferentes matizes ideológicos. De um lado, as manifestações ganhavam cada vez mais visibilidade pública, adesões, simpatias e isto se dava através do que era veiculado nos meios tradicionais, muito embora a cobertura da imprensa tivesse mantido uma postura de opinião bastante dúbia e crítica aos protestos. De outro lado, organizações com reivindicações específicas ampliavam as bases dos protestos, convocando os manifestantes às ruas, através das redes sociais, principalmente o Facebook e o YouTube. É interessante notar que esta mobilização cibernética se deu, e se dá, em duas frentes: pelo compartilhamento de informações contidas em outros sites, notadamente as versões eletrônicas da imprensa tradicional e pela produção de material informativo próprio, postado em sites da internet. Os vídeos produzidos pelos próprios manifestantes, com ampla utilização das câmeras de telefones celulares, postados quase em tempo real, foram vitais para a abrangência da mobilização assistida nas manifestações.
Manifestações influenciaram linha editorial
O site da Interagentes, uma empresa especializada em monitoramento das redes digitais, apresenta um interessante relatório de acompanhamento e análise destes comportamentos. A partir de dois conceitos-chave, HUB e Autoridade, o documento demonstra a frequência com que fontes foram utilizadas durante os dias de protesto mais intenso na cidade de São Paulo. Segundo a sua explanação metodológica, Autoridade “estima o valor do conteúdo de cada página ou nó a partir do número de compartilhamentos de suas postagens”, enquanto HUB avalia “o valor de suas ligações (links) para outras páginas ou nós”. Explicando melhor, continua: “Dito de outra forma, enquanto um bom HUB representa um nó que aponta para muitos ‘nós’ da rede, uma boa Autoridade é apontada por diversos outros HUBs. Em suma, um nó de rede (pessoa ou página) que tenha seus posts muito replicados tem uma grande Autoridade. Já quem compartilha muitos posts de outros perfis tem um valor de HUB mais elevado”. A metodologia empregada permite a comparação com as tradicionais medidas de audiência dos veículos impressos e da radiodifusão. Com ela, puderam construir uma cronologia dos acontecimentos é bastante esclarecedora sobre a relação entre o desenvolvimento das mobilizações populares e o papel desempenhado pelos diferentes veículos. Abaixo, um breve resumo do relatório:
** O movimento indicou uma forte hibridização entre as ruas e as redes: Facebook, Twitter, YouTube.
** Inicialmente convocados por movimento social, Movimento Passe Livre, logo passa a considerar, também, ilegítima a liderança dos movimentos sociais organizados.
** A repressão policial, com a consequente ampliação da visibilidade dos protestos, faz crescer o número de mensagens no Facebook, considerando apenas o mês de junho, de 10.500 para mais de 300.000 (por dia de protesto).
** Principais autoridades são: páginas do jornal O Estado de S.Paulo, do Movimento Passe Livre (SP), do Mídia Ninja, da CartaCapital, da Folha de S.Paulo, Movimento Contra a Corrupção, Anonymous Brasil – as posições se alteraram durante o crescimento dos protestos, mas a imprensa tradicional manteve um permanente papel de destaque sobre os blogs e sites independentes na Internet.
** Os HUBs são bastante diversificados mudam muito ao longo do tempo: Anonymous Brasil, Movimento Contra a Corrupção, Passe Livre São Paulo, Movimento Passe Livre, Verdade Nua & Crua.
O relatório continua, com uma análise mais aprofundada do movimento e da utilização das redes. Entretanto, parece sofrer de um vício decorrente de suas próprias virtudes. Tratando-se de uma da poucas metodologias consistentes para o acompanhamento da visibilidade social da Internet, parece sobrevalorizar a rede cibernética, diminuindo as conhecidas influências dos meios tradicionais no imaginário cultural e político. Ao analisar o papel de Autoridade de veículos da imprensa nos protestos, conclui, ainda que secundariamente:
“Muito longe de dizer que a presença destes veículos como autoridades nas redes tenham tido alguma influência no curso das manifestações, o que vimos foi o contrário, o curso das manifestações influenciou as principais linhas editorias de cobertura por parte dos grandes veículos” [idem].
Protestos indicavam insatisfação mais ampla
Se é verdade que a amplificação das vozes das ruas obrigou a grande imprensa a mudar o tom de suas narrativas noticiosas e das análises dos protestos, também chama a atenção que a alteração de uma postura crítica para um discurso de apoio às Jornadas de Junho veio acompanhada de uma vigorosa interferência nas pautas do movimento. Alguns fatos, ignorados no relatório do Interagentes, podem ajudar a verificação de que a influência da TV e da imprensa foi maior do que a destacada.
Os atos do dia 13 de junho foram marcados pela violência policial, que vitimou não apenas os manifestantes, mas também muitos jornalistas. Este episódio marcou o ponto de inflexão do movimento de protesto, que ganhou enorme simpatia popular – sem dúvidas, pelo impacto que as imagens produziram na rede – e forçou as editorias jornalísticas a criticar Estado e governantes pelo abuso do uso da força e desrespeito pelo trabalho da imprensa. O desenvolvimento da simpatia popular pelos protestos foi, entretanto, mais rápida que a indignação da imprensa, cuja pauta principal era, naquele momento, impedir a vitória de um projeto de Emenda Constitucional regulamentadora dos direitos de investigação criminal pelo Ministério Público, a PEC 37.
Na noite deste dia, o comentarista da Rede Globo de TV Arnaldo Jabor, conhecido pelo destempero de suas verdades peremptórias, destila toda a arrogância da emissora em duras críticas aos manifestantes, que chama de “meninos de classe média”, ignorantes e rancorosos. O comentarista afirma, dentre outras críticas, que os manifestantes protestariam por uma causa marcada pela “ausência de causas” e pergunta por que aqueles jovens, no lugar de lutar contra o aumento de R$ 0,20 nas passagens dos transportes coletivos urbanos, não estavam lutando por causas mais relevantes, como “a PEC 37, por exemplo”.
Quatro dias depois, no dia 17 de junho, a TV Cultura, emissora do sistema público de rádio e TV do estado de São Paulo, entrevista, no programa Roda Viva, a estudante Nina Capello e o professor Lucas Monteiro de Oliveira, líderes do Movimento Passe Livre. Neste mesmo dia acontecia na capital paulista uma das maiores manifestações públicas, com a estimativa oficial de mais de cem mil participantes. O Roda Viva é cenografado como uma arena, onde os entrevistados ficam no centro, sentados em cadeiras rotativas, no nível do “palco”, e os entrevistadores, jornalistas e especialistas no tema em pauta, ficam em posição elevada, na “arquibancada” da arena. Entre os entrevistadores deste dia estava uma jovem jornalista da Folha de S.Paulo, Giuliana Vallone, uma das vítimas da violência policial do dia 13, que estampava no rosto os hematomas decorrentes de um disparo de arma não-letal da polícia militar paulista, cuja agressão fora a notícia mais destacada daqueles dias. Veio de Vallone a primeira menção ao fato das manifestações terem pautas múltiplas, muito além do preço da passagem dos ônibus. Apesar dos entrevistados insistirem que o Movimento Passe Livre convocara as passeatas contra o aumento das passagens, não foram poucos os entrevistadores que insistiram que os protestos indicavam uma insatisfação popular muito mais ampla, destacadamente contra o governo federal e contra a PEC 37. Outro ponto a ser destacado na entrevista foi a insistência no questionamento sobre a relação do Movimento Passe Livre com partidos de esquerda aqui.
Movimento Passe Livre acusado de “negociar”
Na mesma noite do dia 17, Arnaldo Jabor volta a comentar as manifestações, fazendo a autocrítica: “À primeira vista, esse movimento parecia uma provocação inútil, que muito criticaram, erradamente, inclusive eu…”. Seu texto passa a elogiar os jovens manifestantes, mas não sem alertar para vários riscos, como a violência e a falta de objetivos. Sublinha o que chama de paralisia da República, em decorrência de interesses “partidários ou privados”. “É preciso uma política nova, se reinventando”, continua, “mas com objetivos concretos, como, por exemplo, a luta contra o projeto de Emenda Constitucional, o PEC 37, que será votado a semana que vem, para limitar o Ministério Público, que defende a sociedade. Se tudo correr bem, estamos vivendo um processo histórico lindo e novo. Os jovens terão nos dado uma lição: democracia já temos, agora temos de formar uma República”.
Nos dias 18 e 19, prolifera nas redes sociais o compartilhamento de um vídeo com as marcas e a estética mascarada do movimento Anonymous Brasil, inspirada no filme V de vingança. Neste vídeo, onde se sugere que as manifestações de junho são autoconvocadas e não tem liderança, é feita a afirmação de que “só a diminuição do valor das passagens de transportes públicos não nos satisfazem, mas realmente temos que saber por onde começar um novo Brasil!”. Para tanto, decidem levantar bandeiras que não envolvam polêmicas, “sem bandeiras partidárias ou subjetividades”, propondo lutar por “causas de cunho moral, que são unanimemente aceitas.” Declara, então, “As 5 Causas” dos protestos, onde se destaca a questão da PEC 37, que surge como primeira causa [as 5 causas: “1. Não à PEC 37. 2. Saída imediata de Renan Calheiros da presidência do Congresso Nacional (sic). 3. Imediata investigação e punição de irregularidades nas obras da Copa, pela Polícia Federal e Ministério Público Federal. 4. Queremos uma lei que torne a corrupção no Congresso crime hediondo. 5. Fim do foro privilegiado, pois ele é um ultraje ao artigo 5º da nossa Constituição!”].
O site AnonymousBrasil.com negou a autoria do vídeo e a sua postagem nas redes, mas afirmou que, baseado no principio do “hackerativismo”, o Anonymous é um movimento e não uma organização. Assim, pode ser um Anonymous qualquer um que se identifique com a causa. Apesar disso, a rede RBS, afiliada à Rede Globo de TV no Rio Grande do Sul, exibiu, no dia 30 de junho, uma reportagem sobre o vídeo e uma suposta entrevista com “lideranças” da “organização”, feita através da internet, onde os rostos dos entrevistados apareciam cobertos por panos. A reportagem não questiona a falta de identificação dos entrevistados, que falariam por uma “organização internacional”, mas destacou a vitória no arquivamento da PEC 37 e o debate de uma legislação que tornaria a corrupção crime hediondo.
Não há como deixar de estranhar a coincidência entre os discursos e pautas da media hegemônica com o de grupos de natureza coletivista, orientados por princípios próximos ao anarquismo. A mudança de posição da media foi absolutamente sincronizada com a incorporação das pautas mediáticas pelos jovens nas ruas. Até o 17 de junho, não eram vistos protestos sobre as PECs ou sobre “As 5 causas”, embora o tema da corrupção fosse permanente nas manifestações. No dia 20 de junho, “As 5 causas” estavam presentes na maioria dos cartazes, as lideranças formalizadas foram banidas dos protestos e manifestantes identificados com partidos políticos e sindicatos foram agredidos e expulsos das ruas por outros manifestantes. O Movimento Passe Livre foi acusado de “negociar” com políticos, partidos e sindicatos, hostilizado e, no dia seguinte, declarou que abandonava a convocação das manifestações, sob um certo júbilo mediático.
O show tem que continuar
Ao contrário de uma mera coincidência, a media vinha mantendo um papel protagônico na catalisação de insatisfações massivas contra a corrupção, principalmente após a primeira vitória eleitoral do presidente Lula. A contínua denúncia de casos de corrupção, a maior parte deles informados por investigações do Ministério Público e distribuídos, em caráter privilegiado, à grande imprensa brasileira, vinha fomentando a sensação popular de impunidade no país, garantindo conteúdos mediáticos de grande interesse público. A forte adesão aos protestos convocados pelo Movimento Passe Livre, entretanto, surpreendeu até mesmo a media, que, num primeiro momento, reagiu negativamente à perda da primícia. Esta atitude custou muito caro, pois catalisou um dos alvos dos protestos, que era a própria media e seu comportamento arrogante contra os movimentos sociais. Carros de reportagens foram queimados e um jornalista da Rede Globo foi impedido de gravar a reportagem sobre uma das passeatas [http://entretenimento.r7.com/blogs/fabiola-reipert/globo-e-xingada-e-impedida-de-gravar-em-protesto-contra-aumento-das-passagens/2013/06/17/]. Entretanto, quando jornalistas de TV – e foram vários – passam a se retratar em público, fazem o mea culpa e assumem um ar um discurso de positiva moralidade em relação aos protestos, ganham um enorme fôlego para interferir nas agendas e mobilizar uma certa “insatisfação difusa”. Desta mudança de postura, tiraram diversas vitórias: a neutralização de lideranças de movimentos populares organizados, a continuação de uma hostilização moral da política, das instituições e dos partidos e tudo isto emblematicamente embalado na vitória contra a controversa PEC 37. Vitória da iluminada arrogância do espetáculo sobre a razão política da democracia participativa. Vitória, também, da capacidade mediática de invisibilizar pautas incômodas, como os próprios protestos contra os veículos de comunicação de massa.
Qual a origem de tamanho poder, o que sustenta a arrogância que legitima a media a pautar toda uma sociedade? A resposta certamente não é simples e a origem desta legitimidade é múltipla e complexa. Mas é preciso que entendamos a natureza social dos empreendimentos mediáticos, cuja realidade está sempre nublada pelo foco analítico nos seus conteúdos e nas taxativas reafirmações da liberdade de expressão, muito embora a media se configure como um negócio dos mais lucrativos do mundo contemporâneo. Como entender, pela simples interpretação dos textos e discursos mediáticos, a formação de um negócio comercial, que impacta numericamente a produção de riqueza mundial, superando até mesmo atividades industriais vigorosas, como a da produção de automóveis? Se a resposta para isto for a simples e transcendente ideologia, teríamos que entender a media como um negócio idealista e suicida, onde a defesa das ideias teria preferência aos lucros. Não é assim que as coisas parecem acontecer.
Para que se possa ter uma ideia da dimensão econômica da media, tomemos o exemplo espanhol. Em 2005, seu PIB era de cerca de € 900 bilhões [Scandiucci Filho, José Gilberto. Desequilíbrios Externos da Economia Espanhola. In Economia Política: Análise e estratégianº 7, outubro-dezembro, 2005], enquanto os investimentos em publicidade somavam perto de € 15 bilhões [Estudio Infoadex de la Inversión Publicitaria en España 2007 – Resumen – www.infoadex.es]. O que se pode facilmente perceber é que somente o mercado publicitário, o setor mais visível da media, representou cerca de 1,7% da economia do país, mais do que várias outras iniciativas isoladas de setores como os serviços, do comércio e da indústria. Entretanto, a publicidade não anda só no campo mediático, ela surge das próprias necessidades mercadológicas do setor produtivo e depende de produtos jornalísticos, de entretenimento e informação geral, veiculados por meios gráficos, eletrônico-informacionais, cinematográficos, etc., que fixam a atenção de olhares disponíveis para a exibição das mensagens publicitárias e propagandísticas. A lógica mediática nasce junto com a mercadoria industrial, na qual são investidas gigantescas somas nas pesquisas de mercado, design, identificação do produto com o consumidor e todas as outras atividades relacionadas ao marketing. Assim, se somados os investimentos totais no campo da media, envolvendo todos os atores e processos deste negócio, estes valores certamente representarão um impacto consideravelmente mais expressivo na economia, superando, com boa margem de certeza, atividades mais tradicionais.
Audiência não “consome” os conteúdos
É necessária, portanto, uma mudança no olhar sobre a media se quisermos compreender a sua forma de atuação na sociedade e o significado dessas ações. Se aprendemos a entender o jornalismo na defesa do cidadão dos excessos do Estado, o rádio, cinema e TV como um lugar onde a produção e difusão do entretenimento, por outro lado é mais do que certo que tudo isto, oriundo do generoso olhar dos iluministas sobre as transformações que as revoluções burguesas prometiam à sociedade, estão na gênese da media. A democracia moderna, sem dúvida, dificilmente se realizaria sem a sua atuação e o mundo das representações artísticas ainda estaria limitado a uma limitada elite, não fossem os milionários investimentos da indústria cinematográfica e editorial. Mas, tanto a notícia jornalística, como o cinema ou o livro só existem na medida em que podem produzir lucros superiores a estes investimentos.
Se olharmos com atenção o processo de construção social do valor – e dos lucros, consequentemente – nos negócios mediáticos, entretanto, termos dificuldade de reconhecer a origem do lucro que justifica a existência do negócio. A TV aberta, o rádio e mesmo alguns tipos de jornais nos fornecem diariamente informações sem que desembolsemos qualquer quantia por elas. Todos sabemos como este negócio se financia e produz lucro: a venda de espaços de divulgação publicitária. Mas, se sabemos, por que continuamos a reafirmar que a media vende informação? Se assim fosse, não seria da relação comercial direta do produtor com o consumidor da informação que o lucro se originaria? A própria media insiste em afirmar cotidianamente que a natureza do seu negócio reside na produção e entrega da informação diretamente para a sua audiência, uma arrogância que esconde a essência de seus lucros.
Uma tentadora ferramenta teórica para atacar a questão é a noção marxista de fetiche da mercadoria. Para Marx, as relações sociais seriam mediadas pelas mercadorias, fazendo parecer as relações entre as pessoas uma relação entre coisas. Este processo de reificação esconde o trabalho, concretamente trocado no mercado, transformando-o na troca de valores abstratos fetichistamente atribuídos à mercadoria [Marx, Karl. Capital, a critique of political economy. Progress Publishers, Moscow, 1980]. Buscando entender o processo mediático por esta ótica, qual seria o trabalho concreto realizado para a produção do valor na media? Se é verdade o que foi dito acima e sabemos que o lucro é produzido no processo de venda de espaço para a publicidade, será aí que encontraremos a produção de valor e a difusa mercadoria mediática. Mas a media não produz e vende um pedaço de papel ou a fatia de uma onda eletromagnética, pois seria mais fácil e barato o anunciante comprá-los diretamente do fabricante de papel ou de osciladores eletrônicos. O anunciante compra uma expectativa de visibilidade de sua mensagem publicitária e o valor atribuído a essa transação comercial é estabelecido pela capacidade dos trabalhadores do veículo de comunicação em produzir esta visibilidade. No negócio mediático, é o conteúdo – notícia, novela, filme, etc. – que faz às vezes da ferramenta – meio-de-produção – socialmente capaz de produzir esta mercadoria. Daí o expressivo investimento na produção de conteúdos, mas também revelador do seu caráter de “capital” e não de mercadoria consumida pelo leitor, pela audiência. A audiência não “consome” os conteúdos, é produzida por eles, ao mesmo tempo em que os incorpora no patrimônio daquilo que genericamente chamamos cultura.
A transformação da audiência
A audiência é constituída por pessoas de carne e osso; pessoas que andam pelas ruas, que trabalham, que se vestem, que amam e se divertem. Esta abordagem já havia sido ensaiada, nos anos 1960 e 70, por autores marxistas como Dallas Smythe [Smythe, D. W. “Communication: a blindspot of Western Marxism”, Canadian Journal of Political and Social Theory, vol. I, n. 3, 1977], dentre outros. Smythe foi fortemente criticado por atribuir um valor produtivo ao ócio. Caiu em certo esquecimento nas teorias da comunicação, mas deixou um incômodo intelectual na Economia Política das Comunicações, e nas teorias da comunicação como um todo, como descrevem Armand e Michelle Mattelart:
“A economia política pretendia suprir as carências da semiologia da primeira geração, atenta antes de mais nada aos discursos como conjuntos de unidades fechadas sobre si mesmas e que contêm os princípios de sua construção (…)”
E continuam:
“(…) A economia política estimulou, naquele país (Grã-Bretanha), uma polêmica aberta com a corrente dos Cultural Studies, acusada de privilegiar de maneira isolada o nível ideológico.”
Se a Economia Política, da qual Smythe é um dos pioneiros, traz à tona as limitações de uma compreensão da media, estabelecida exclusivamente pelo seu conteúdo (narrativas, discursos, ideologias), sua abordagem não consegue esclarecer o significado deste lado mais visível dos veículos de comunicação massiva. Para ela, a relação está fundada exclusivamente na produção da audiência, onde o próprio espectador, no processo de transformação em mercadoria, atua produtivamente, sem conseguir explicar o papel dos conteúdos (e dos enormes investimentos em sua produção) na relação media-audiência. Indo um pouco mais além, se percebe que o espectador não pode ser visto apenas como ser passivo no processo, tenta explicar o seu caráter ativo pela transformação do ócio em trabalho. Ignora, com isto, toda uma complexa abrangência da mediana sociedade contemporânea, onde as pessoas, audiência, representam mais do que a mercadoria. Transformadas pela lógica da massificação, as pessoas passam a ser o alvo do outro aspecto do processo mediático: são consumidores e interessam ao anunciante. Como audiência, são passivos, mas, na qualidade de consumidores, são seres ativos e é sobre esta condição que recai o interesse da publicidade. São igualmente cidadãos, que, na lógica mediática, no lugar de exercerem direitos civis, são consumidores de serviços e políticas públicas.
Colocando a produção da audiência no centro da cadeia de produção de valor na media, terminamos por perceber que este é o real foco da guerra competitiva estabelecida pelos diversos veículos: produzir a audiência com o maior valor adicionado. Entendemos também que todos os veículos e meios – cinema, TV, rádio, internet etc. – competem entre si e em um mesmo mercado. Não é para menos que as empresas do setor dificilmente estão presas ao negócio de um único veículo. Ao contrário, costumam formar milionários conglomerados de veículos, na disputa de cada olhar disponível, cada espaço de reunião pública, cada lugar por onde passem pessoas, a matéria-prima disputada com ferocidade. Na competição pela audiência, a mediase expande, ocupa todos os espaços e se superpõe ao espaço público real e concreto. Transfere, pelo poder concedido a quem opera no centro de um capitalismo dependente do consumo de massa continuadamente crescente, toda a vida social para o virtual ambiente mediático. A política, a economia e a cultura passam a ter fraca influência social se estiverem fora do ambiente media. Com a cidadania, evidentemente, ocorre o mesmo. Diferentemente da mercadoria analisada por Marx, no ambiente mediao que se obscurece é a transformação da audiência em mercadoria e do cidadão em consumidor [sobre este tema ver: Sôlha, H.L. “Convergencia en el Campo Mediático: algunas reflexiones sobre el control social y la regulación de los médios”. In Susana Sel (org.), Imágenes, Palabras e Industrias de La Comunicación: estudios desde el capitalismo informacional contemporâneo. Buenos Aires, La Tinta ediciones, 2008 e Notas Sobre a Mídia e a Sociedade Brasileira. In Susana Sel (org.) La Comunicación Mediatizada: hegemonías, alternatividades, soberanías. Buenos Aires, Clacso, 2008].
A privatização das liberdades
O espetacular, o colorido, chamativo e bem diagramado são figuras chave na construção da mercadoria audiência. Neste aspecto não se diferem as notícias do show musical ou do filme cinematográfico. Todos operam na mesma lógica gráfica, visual. As passeatas de junho ou as novelas fazem parte do mesmo universo espetacular, ou, parafraseando o termo cunhado por Debord, a mesma sociedade do espetáculo [Debord, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro, Editora Contraponto, 2000].
Não é de se estranhar, portanto, que a media dispute até mesmo as pautas dos movimentos sociais, como visto acima. Ela assume um dever de mercado em manter os olhares voltados para si, mas educados e conformados para o consumo. E não há promessa de consumo na objetividade racional do movimento social organizado e nem esperança de emocionais ações consumidoras massivas nos seus apelos ao comportamento crítico [sobre a relação entre consumo, emoção e razão, ver Bauman, Z. Capitalismo Parasitário e Outros Temas Contemporâneos. Rio de Janeiro, Zaar, 2010 e Vida Para o Consumo. Rio de Janeiro, Zaar, 2008].
Se o tipo de relação estabelecida entre a media e a audiência pode ser vista como uma manifestação de arrogância, na medida em que se vale de Direitos Humanos Fundamentais, para estabelecer uma não-reconhecida relação comercial, a arrogância torna-se evidente nas diversas tentativas de tomar para si, exclusivamente, a defesa do Estado de Direito, da democracia e da cidadania, buscando, de certa forma, privatizar a Liberdade de Expressão. Diferentemente da tentativa bem sucedida de pautar as Jornadas de Junho, através das sutis estratégias baseadas no marketing do convencimento, a media vem mantendo uma atitude bem mais conflitiva com os veículos noticiosos alternativos, contra quem está promovendo uma batalha de disputa de hegemonia.
Mídia Ninja, nome do projeto de produção e difusão cibernética de informações e notícias, vinculado à iniciativa cultural coletivista, “Fora do Eixo”, vem atuando com relativo sucesso há quase dez anos, mas teve os seus momentos de maior visibilidade pública durante as Jornadas. Sua estratégia é simples e se vale das tecnologias digitais disponíveis a qualquer consumidor comum, como as câmeras, bem como a capacidade de conexão à rede, dos telefones celulares. Desenvolvida a partir das experiências árabes, estadunidenses e europeias, sua metodologia foi largamente empregada na cobertura dos eventos por diversos manifestantes, ainda que não vinculados ao coletivo, e garantiu um abastecimento intenso de informação para as Redes Sociais durante as manifestações.
“Avaliar, controlar e punir”
Sem edição de qualquer tipo, na maior parte das vezes, o material bruto era carregado no Facebook ou no YouTube quase em tempo real. O olhar “noticioso” é o do próprio manifestante, quase sempre antecipando em algumas horas a imprensa tradicional, e terminou por revelar uma incômoda surpresa: diferia notavelmente do que era exibido na TV ou comentado nos jornais. Não diferia apenas esteticamente ou no ponto de vista, mas mostrava acontecimentos simplesmente ignorados ou invisibilizados pelos veículos tradicionais.Atingindo um público imenso, ávido de notícias do que se passava nas ruas, a divergência das informações logo foi notada e largamente compartilhada nas redes. Particularmente, ficou evidenciado que os protestos também eram dirigidos às grandes redes de TV e imprensa, como já citado anteriormente, que não pareciam gozar de mais confiança dos manifestantes, do que a estrutura político representativa do país. As grandes corporações mediáticas passaram, então, a ser um dos focos dos debates políticos na rede.
Já faz alguns anos, desde as discussões organizadas em torno da Constituinte de 1987/88, que significativos setores da sociedade civil se mantém organizados em torno do tema Comunicação de Massa e a necessidade de sua regulação. Durante a gestão do músico e então ministro da Cultura, Gilberto Gil, foram organizados vários eventos oficiais sobre o tema, culminando na realização da I Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), em 2009 [sobre o debate regulatório e a Confecom, ver Sôlha, H.L. Conferência Nacional de Comunicação: da Liberdade de Expressão à censura mediática. In Susana Sel (org.)Políticas de Comunicación en el Capitalismo Contemporáneo. Buenos Aires, Clacso, 2010]. Tendo em vista o silêncio imposto pelos jornais, revistas e emissoras de TV sobre o assunto, que se resumiam a comentar sem noticiar, a maior parte da sociedade brasileira desconhecia o assunto. Sob o argumento da inalienabilidade das liberdades de imprensa e de expressão, os meios de comunicação de massa se outorgaram o direito à censura do tema, impedindo o seu debate no único espaço público de ampla visibilidade social, o espaço media, demonstrando, definitivamente, que fora dele nada tem existência social real. Com base na demonstração desta verdadeira privatização do espaço público, onde corporações podem decidir sonegar à sociedade um debate de interesse público, aqueles setores da sociedade civil, que vinham há anos militando pela abertura dos debates, acirrou a luta e lançou, no final do ano de 2011, a campanha “Para Expressar a Liberdade: por uma lei da mídia democrática”.
Ao mesmo tempo em que o tema vinha a ponto de ebulição nos setores especializados, as grandes corporações mediáticas brasileiras, em coro com a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) e organizadas pela Associação Nacional de Jornais e Revistas (ANJ), passam a insistir, quase cotidianamente, nos riscos para a democracia latino-americana promovidos por governos de esquerda, através de legislação de regulação das comunicações na Venezuela, Equador, Bolívia e Argentina. Não faltaram, também, acusações a um sombrio plano do governo petista brasileiro de golpear a democracia, amordaçando a imprensa. Em setembro de 2010, a revista de circulação nacional, Veja, publicava:
“Neste ano, contudo, a poucos meses de deixar o governo, Lula abraçou outro projeto com o mesmo teor: a implantação de um ‘observatório de conteúdos midiáticos’, tribunal que seria encarregado de avaliar, controlar e punir jornalistas. A ideia, surgida na Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), está prestes a circular, em forma de projeto de lei, no Congresso Nacional. É uma bomba-relógio, que terá de ser desarmada no próximo ano. A Associação Nacional de Jornais (ANJ) já se mobilizou, anunciando em agosto a criação de um órgão de autorregulação do jornalismo. A ideia é formar uma entidade em que os próprios jornalistas e empresários do setor discutam e estabeleçam as diretrizes de sua atividade”.
Um verdadeiro linchamento mediático
A proposta de tal “tribunal” não consta dos cadernos de resoluções da Confecom e os anais da Câmara dos Deputados não mencionam qualquer iniciativa legislativa com esse teor, mas a notícia foi reproduzida em outros veículos na época. Difícil para o leitor, que, sem saber sequer o que foi a Confecom, não forma facilmente uma opinião sobre o assunto. De qualquer sorte, o tema é recorrente, nas redes sociais.
Nem mesmo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, escapou do obsequioso silêncio, quando declarou, em seminário do instituto que leva o seu nome, que “não há como regular adequadamente a democracia sem regular adequadamente os meios de comunicação”.
Com a eclosão das Jornadas de Junho, a insatisfação com a media veio à tona e os debates sobre a democratização dos meios de comunicação começam a ganhar maior visibilidade, deixando as empresas de comunicação de massa em situação bastante incômoda. Enquanto os protestos, em geral, perdem o foco e a definição dos seus contornos, muitos dos manifestantes tem propostas bastante concretas sobre o tema: criar uma legislação que regulamente a aplicação de verbas públicas para a publicidade oficial do Estado, garantindo uma divisão equitativa e que inclua a chamada media alternativa. A proposta, que tem defensores de todos os matizes políticos internacionalmente, é defendida até pelo megaespeculador do mercado financeiro, George Soros, que mantém uma fundação de monitoramento do exercício da Liberdade de Imprensa e Direitos Humanos, a “Open Society”. Seu relatório, “The Price of Silence”, acusa diversos governos latino-americanos de impor uma “censura silenciosa” à imprensa, através da distribuição discriminatória das verbas publicitárias. Sugere, enfaticamente, a criação de legislações nacionais que imponham uma igual distribuição destes recursos entre todos os veículos.
A proposta, neste momento representada pela atuação e questionamento do Mídia Ninja e do Fora do Eixo, não tardou a receber uma forte reação contrária das corporações mediáticas nacionais. Com uma articulação muito parecida com a utilizada para minar a liderança do Movimento Passe Livre, o líder do coletivo Fora do Eixo, Pablo Capilé, e o coordenador do projeto Mídia Ninja, Bruno Torturra, forma convidados para o programaRoda Viva, da TV Cultura, e submetidos a uma sabatina de jornalistas profissionais. Inicialmente, os entrevistadores questionaram o caráter jornalístico do Mídia Ninja, seguido-se críticas à forma de organização e financiamento do coletivo cultural Fora do Eixo. As reações da imprensa nos dias que se seguiram à entrevista, foram de uma virulência poucas vezes vista, em se tratando de atores sociais menores, como um coletivo de produção cultural. Foram publicadas fotos dos líderes do coletivo e do projeto ao lado de políticos, na sugestão de que tinham vínculos partidários; apresentaram-se documentos comprobatórios de que o coletivo capta recursos públicos e privados através de editais dos editais de financiamento de projetos culturais (prática legal e corrente no meio da produção cultural), à guisa de denúncia de que não há nada de alternativo na iniciativa; duas críticas de ex-integrantes do coletivo, foram amplificadas à condição de denúncias de trabalho escravo e exploração sexual; foram desqualificadas as ações jornalísticas do grupo, com base na pouca frequência de jornalistas diplomados nos quadros do Mídia Ninja. Ressalte-se aqui, não existir qualquer legislação em vigor que exija o diploma para o exercício do jornalismo no Brasil e que as empresas da imprensa mantém um grande lobby legislativo para impedir o andamento de um projeto de lei, neste sentido, de iniciativa da Federação dos Jornalistas.
Como exemplos, o jornal O Globo, na edição de 4 de agosto de 2013, na coluna de Chico Otávio, acusa “Ninjas querem dinheiro público para sobreviver”; o blog de Reinaldo Azevedo, no site da revista Veja, no dia 5 de agosto de 2013, estampava “Estes são os candidatos a ditadores da mídia alternativa”; a mesma revista Veja, em 12 de agosto de 2013, publicava, devidamente acompanhada de uma foto do ativista junto com a presidente Dilma, a matéria “Conheça Pablo Capilé, o líder por trás do Mídia Ninja. Ele vive entre dois mundos, com um pé fora do eixo e outro dentro do governo”; em 18 de agosto de 2013, o jornal O Estado de S.Paulo, publica reportagem de Bruno Paes Manso e Flávia Guerra, com a seguinte chamada “Coletivos travam em SP guerra virtual. No centro da discussão está grupo que usa dinheiro público e apoia jornalismo alternativo”. Poucas vozes moderadas foram publicadas nestes dias nos grandes jornais, mas destacou-se um colunista de O Globo, Francisco Bosco, que, na edição de 13 de agosto de 2013, publicou “Melhor nos preocuparmos com os verdadeiros inimigos da democracia”.
Todas as palavras-chave em voga para desqualificar politicamente alguém foram usadas: dinheiro público, partido político, esquerda, corrupção etc. Da noite para o dia, Pablo Capilé foi acusado e condenado à condição de inimigo público. Um verdadeiro linchamento mediático, com poucas provas e nada de tempo para a reflexão e análise. Seu crime? Ousar disputar a hegemonia da produção da informação, da audiência e concorrer no espaço mediático com os conglomerados. Saiu gravemente ferido da batalha, mas os resultados da guerra ainda não podem ser previstos.
Por conclusões preliminares
Os dois tipos de ação das grandes empresas de mediadurante as Jornadas de Junho, a disputa da pauta e a disputa de hegemonia na produção da informação e da audiência, parecem demonstrar que a reversão do quadro de privatização do Direito Humano Fundamental da Liberdade de Expressão representará uma longa, penosa e dolorida batalha para a sociedade brasileira. Entretanto, o controle absoluto sobre a informação e a voz pública, capitalizada e mercantilizada pelas grandes corporações da comunicação de massa, como buscamos demonstrar nos fatos aqui analisados, impõe o urgente esforço de todos os setores, públicos e privados, na abertura e publicização do debate, sob a pena nos tornarmos um país formalmente democrático na configuração do Estado, mas submetidos à autocracia da arrogância privada da media.
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Hélio Lemos Sôlha é professor universitário, Campinas, SP – MediaTec – Unicamp
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