Discurso do Prof. José Mario Martínez Pérez (IMECC) ao receber o Título de Professor Emérito
Como todos sabem, eu sou argentino. Como alguns de vocês sabem, não sou argentino. Nasci em Cangas del Narcea, uma vila mineira de Astúrias, Espanha e fui batizado com os nomes José e Mario em memória de dois irmãos da minha mãe. Mario morreu combatendo o fascismo na guerra civil espanhola e José (Pepe) morreu em um campo de concentração nazista em 1943, depois de, como exilado espanhol, ter sido capturado na França pelos nazistas. Na mesma época, na nossa vila natal, um irmão e um primo do meu pai eram assassinados pelos fascistas espanhóis. Meus avôs eram católicos fervorosos e minhas avós eram anticlericais fervorosas. Conta-se que a mãe do meu pai foi gritar na porta do quartel onde meu pai estava encerrado: “Não torturem meu filho, se é para matar, matem-no, como já me mataram um, mas não o torturem!” Minha mãe, que nunca se recuperou da tristeza pela desaparição e posterior confirmação da morte de meu tio Pepe, nos seus últimos meses de vida, semi-consciente, não cessava de repetir os nomes dos irmãos mortos, ou seja, meus nomes.
Meus pais decidiram emigrar à Argentina na busca de um melhor futuro para mim, único filho. Vários parentes tomaram a mesma decisão. Foram, essencialmente, bem sucedidos. Os filhos (meus primos) que cresceram na América Latina (Argentina e México) desfrutaram de melhores condições de educação básica e universitária que os que ficaram na Espanha. O general Franco, titular da primeira ditadura sob a qual minha vida transcorreu, era um militar medíocre e fundamentalista cuja única esperteza foi passar de capacho da Alemanha nazista a delegado dos interesses norte-americanos na porta da Europa. Franco morreria na cama em 1975, e voltaria a morrer quando um ridículo militar subalterno de ultra direita, o Teniente Coronel Tejero, invadiu o incipiente parlamento democrático em Madri, ordenou que todos os deputados se jogassem no chão, e presenciou, estupefato, que era desobedecido por dois políticos de ideologias opostas: Santiago Carrillo e Adolfo Suárez.
Estudei na escola primária pública, não sem antes ter passado por doenças que me levaram a longa internação e duas intervenções cirúrgicas em um hospital público, o Hospital Pirovano. Fiz o segundo grau num colégio público, nos tempos em que era claro que o ensino público era o que realmente valia e que as escolas privadas eram para aqueles que, tendo recursos econômicos, não conseguiam atingir os padrões do ensino estatal. Entrei na Universidade de Buenos Aires (naturalmente, também pública, laica e gratuita) com muitas dúvidas em relação a minha vocação, aproveitando que era permitido cursar duas carreiras simultaneamente. O tempo que estudei na Faculdade de Filosofia e Letras foi importante para minha formação (passei em um exame final com o Professor Mauricio Knobel, 10 dias depois do nascimento de seu filho Marcelo). Entretanto, meu interesse e talento pelas chamadas Ciências Humanas era bastante limitado e minhas inquietudes intelectuais me levaram a aprofundar as áreas de matemática mais conectadas com a filosofia, como a Lógica e a Teoria de Conjuntos. Me apaixonei pela matemática transfinita, criada por Joerg Cantor no século XIX e escrevi minha tese de licenciatura sobre árvores do ponto de vista ordinal.
A Matemática Transfinita problematiza e desnaturaliza a noção de número. Nesse sentido é, provavelmente, a área da matemática mais próxima da filosofia e talvez da Arte. Os chamados números naturais se revelariam, com o Teorema de Godel em 1933, muito menos naturais do que se acreditava. Como a Arte, a matemática transfinita revela, em aquilo que sempre enxergamos de maneira ingênua, ângulos inesperados. Como a filosofia, a MT procura elucidar racionalmente a verdadeira natureza e significado do conhecimento. Desnaturalizar e problematizar são operações de pensamento em que se baseia toda evolução cognitiva. São também as operações que nos permitem, individualmente, saltos qualitativos do conhecimento. A função da matemática pura não é meramente semear teoremas para eventualmente serem coletados por físicos e engenheiros. Há uma lógica e uma estrutura no sistema de conceitos matemáticos que os conecta entre si e com as bases da física e das ciências empíricas.
Não me consolidei como matemático puro. Desde 1955 até 1973 houve governos ditatoriais ou ilegítimos na Argentina que aproveitaram a proscrição do maior líder popular naqueles anos para se manter no poder. A restauração da democracia em 1973 motivou em muitos de nós, jovens matemáticos, o sentimento de urgência por fazer algo mais diretamente conectado com o que chamávamos “reconstrução nacional”. Viramos assim “analistas numéricos”, essencialmente auto-didatas, dado que a disponibilidade de cientistas sênior nessa área era muito limitada. Nessa época me familiarizei com os primeiros modelos de hidráulica, área à qual retornaria duas vezes durante os 40 anos seguintes. Mas também essa etapa se frustrou quando, em setembro de 1974, o governo democrático foi capturado por um bando fascista e as universidades públicas foram desmanteladas por um ministro de educação ridículo, que em seu primeiro discurso citava ao “Presidente Nixon” (naquela época encurralado pelo escândalo de Watergate) e se perguntava pelos “inventos “que os cientistas argentinos deveriam ter feito. Pouco depois, fui contratado pela Fundação Bariloche, uma entidade privada mas quase totalmente financiada pelo Estado, que se dedicava ao desenvolvimento científico vinculado a ciências sociais, naturais (biologia, geologia) e matemática.
Em Bariloche mudei de área, passei a trabalhar em Otimização, decidi encarar a tarefa de escrever uma tese de doutorado e entrei em contato com o pessoal que trabalhava no Modelo Mundial Latino-americano. A etapa Bariloche terminou em 1976, quando os militares argentinos se cansaram de terceirizar a repressão com milícias fascistas e resolveram assumir a total responsabilidade pelo que depois se caracterizaria como o maior genocídio da história argentina. Em Rio de Janeiro desfrutamos da hospitalidade e generosidade do Professor Cândido Mendes de Almeida, que contratou a mim e meus companheiros (o nosso time era comandado por Hugo Scolnik) no seu centro de pesquisas sociais (o IUPERJ) para desenvolver aplicações do Modelo Bariloche em América Latina. O MML, elaborado sob a direção do Professor Amílcar Herrera, que depois seria fundador do Instituto de Geociências da Unicamp, tinha surgido como uma resposta desde o Terceiro Mundo a um modelo grosseiramente malthusiano elaborado pelo chamado Clube de Roma e cientistas do MIT. Consistentemente, o MML mostrou que o desenvolvimento sustentável e a mitigação da desigualdade podiam ser atingidos através do planejamento econômico e a cooperação das sociedades humanas. Não por acaso foi considerado subversivo pela ditadura argentina mas, paradoxalmente, foi apreciado com algum interesse por autoridades econômicas brasileiras, de mente mais aberta, daquela época.
O Professor Nelson Maculan me acolheu na UFRJ e foi fundamental para que eu cumprisse os requisitos legais que me permitiriam defender meu doutorado em 1978, com uma tese sobre otimização numérica. Fui contratado esse mesmo ano pelo Departamento de Matemática Aplicada da Unicamp, Aplicada da Unicamp, onde permaneci até o presente.
Ao longo de toda minha carreira, além de trabalhar numa universidade pública, recebi auxílios para minha pesquisa da Fapesp, do CNPq, da Capes e da Faperj, instituições públicas. Orientei dezenas de mestres e doutores financiados por bolsas e salários de instituições públicas e acho ter contribuído decisivamente a instalar, desenvolver e consolidar a área de Otimização Contínua no Brasil. Atualmente nossos grupos de otimização estão disseminados de norte a sul do Brasil e se estendem em Argentina, Colômbia e outros países de América Latina.
A formação de recursos humanos é, certamente, a atividade de maior impacto em que estamos envolvidos. Estudantes são diferentes; na nossa área há os que amam as demonstrações e odeiam a computação, há os computeiros que não querem saber de sutilezas matemáticas, há engenheiros ou interessados na engenharia e há os que se interessam pela Biologia, Física, Economia ou Química. Todos são acolhidos e tratamos de explorar suas potencialidades naturais estimulando seu aperfeiçoamento nas áreas às quais não são naturalmente inclinados. Procuramos ensinar que nem tudo que é bom é publicado e nem tudo que é publicado é bom. Nos nossos seminários, que mantemos vivos semanalmente durante 40 anos, procuramos estimular uma atitude respeitosa, prudente e crítica perante a literatura disponível. O sistema convencional de publicação de papers e revisão por pares tem multiplex defeitos mas o isolamento em relação a ele pode ser mais perigoso e pernicioso ainda. O importante é saber distinguir a ciência da enrolação e do oportunismo. Ensinamos que os enunciados científicos se caracterizam, sobretudo, por sua confrontação com fatos, o que é tão verdadeiro na matemática como nas demais ciências. Na matemática “mais pura “os fatos são, quase sempre, demonstrações e contraexemplos. Na matemática de algoritmos os fatos costumam ser experimentos numéricos e, na matemática de aplicações diretas, os fatos revelam a maior ou menor adequação de modelos `a realidade que se pretende simular. Assim, a Ciência é o conhecimento sistemático onde os enunciados são confrontados, corroborados o refutados com experimentos, observações, demonstrações ou contraexemplos. Enunciados científicos não são aforismos nem frases de efeito e devem ter significados claros e não-flutuantes. As pseudociências, por outro lado, podem manter seus enunciados apesar da discordância com a experiência ou, mais sutilmente, podem definir de maneira ambígua ou enganosa tanto proposições como fatos de maneira que sua confrontação seja impossível. Nossos estudantes aprendem que escolher ciência não é escolher um dogma contra outro. Escolher a independência em relação a todos os dogmas.
A escolha entre temas de pesquisa é uma boa aplicação dos conceitos que Eric Fromm, e antes dele Isaiah Berlin, chamavam liberdade positiva e liberdade negativa. Sob o regime de liberdade acadêmica somos, em princípio, livres. Somos mediocremente livres quando escolhemos um tema pela possibilidade circunstancial de publicar facilmente papers na linha escolhida. Entretanto, exercemos a liberdade positiva quando o fazemos guiados pela curiosidade, pela paixão pelas possíveis descobertas ou pela consciência de nossa responsabilidade social ou ecológica.
A Autonomia Universitária, estabelecida em 1989, foi um avanço necessário, almejado por amplos setores da comunidade acadêmica e acolhido com entusiasmo por professores, funcionários e discentes. Porém, sob o amparo deste incontestável progresso institucional, muitos de nós (enfatizo, eu incluído) nos enganamos duplamente. Por um lado, pensamos que no marco da Autonomia podíamos resolver a maioria dos problemas e dilemas da Universidade. Por outro lado, passamos a acreditar que as questões estritamente universitárias tinham sentido independentemente do debate sobre os destinos nacionais, latino-americanos e planetários.
A realidade golpeou nossas portas em 2015 com fúria inesperada. De repente nos encontramos em um país desconhecido num mundo desconhecido. Foi preciso entender que nossa convivência com o novo país era conflitiva, que os guarda-chuvas institucionais eram frágeis e que, no entanto, o país do Século XXI precisava o tipo de conhecimento, reflexão e projetos que, desde a Universidade, devíamos estar em condições de oferecer.
Acredito que ainda estou longe do meu tempo de pendurar as chuteiras. O projeto mais relevante em que estou envolvido se relaciona com minha participação no CRIAB, iniciado há um ano depois da catástrofe de Brumadinho, projeto de caráter interdisciplinar destinado a compreender, prevenir e reparar os desastres tecnológicos motivados, sobretudo, pelo rompimento de barragens. Este projeto é coordenado pelo Professor Jefferson Picanço, talvez não por acaso um Geocientista, como Amílcar Herrera. O fator desencadeante deste projeto evidencia que a lógica do mercado é impotente para ponderar os riscos inerentes ao crescimento econômico. Vidas humanas não podem ser precificadas. A preservação do planeta não pode ser comprada nem comparada com outras alternativas porque não h´a outras alternativas. Não h´a contas artificiais para ser equilibradas. O incentivo para a solução dos grandes problemas da humanidade do século XXI n˜ao deve ser o lucro nem a acumulação insensata de um capital monetário que jamais será traduzido em bem-estar. Não haver´a Economia sem Ética. Não haverá futuro sem solidariedade e cooperação.
Desejo terminar este depoimento no mesmo lugar onde o comecei, na Espanha. Em 12 de outubro de 1936, na Universidad de Salamanca, o general fascista Millán Astray interrompeu o discurso do reitor Miguel de Unamuno, eminente escritor e filósofo católico, com os gritos “Abajo la inteligencia, viva la muerte!”. espantoso reconhecer esses gritos ecoando e renovados nos nossos tempos e em diversos países. Entretanto, há um par de semanas os responsáveis pela organizção desta cerimonia me solicitaram a indicação de uma música de fundo para acompanhar os intervalos dos trabalhos. Escolhi a interpretação de Mercedes Sosa, Todo Cambia, que você devem ter apreciado. Acho que mais que uma escolha estética era uma mensagem: Todo cambia, tudo muda, tudo vai mudar. Só que as coisas mudam não de acordo com leis históricas inexoráveis, mas pela ação consciente de pessoas concretas. Em parte, essas pessoas somos nós.
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