Por Ricardo Antunes*
Fonte: Unicamp, postado originalmente neste link
Escrevo este texto ainda sob o impacto da morte de Mohamed Habib, em 26 de janeiro último. Não sabia que ele estava internado. O horror pandêmico que estamos vivendo, já se aproximando de completar dois anos, dificultou os contatos, especialmente para aqueles que, como eu, fogem das redes sociais. Assim, desde que Mohamed se aposentou da nossa Universidade, só esporadicamente trocávamos notícias. No ano passado, para tratar de questões contingentes, lhe telefonei e também lhe enviei um e-mail, mas infelizmente não consegui contatá-lo.
Quando soube, poucas semanas atrás, em meados de janeiro, de sua internação em estado grave, consegui com Wagner Romão, nosso colega comum da Unicamp, o zap de Mohamed. Foi quando lhe tentei enviar uma mensagem de ânimo que, creio, ele não tenha tido tempo de ouvir. E quando chegou a triste a notícia de seu falecimento, a tristeza da perda foi ainda muito maior. Partia mais um da “velha geração” da Unicamp.
Conheci Mohamed na Unicamp, logo que aqui ingressei, em 1986. Ele fazia parte do grupo histórico de docentes desde 1972 e já era figura de presença marcante na nossa vida acadêmica. Nas assembleias e na militância da Adunicamp, sua presença era frequente e intensa e assim, rapidamente, nos tornamos amigos.
Em tantas batalhas, debates, eleições, greves e lutas que marcam a nossa vida universitária, sempre estávamos (ou acabávamos) do mesmo lado. Por mais de uma vez tentei, em vão, incentivá-lo a candidatar-se à Reitoria da Unicamp. Ele me dizia que seu nome não conseguiria agrupar todo o leque necessário de apoio para garantir a vitória.
Sua fala com forte sotaque árabe, sua clareza e contundência em denunciar e criticar o que não andava bem, na Universidade, no país e no mundo (biólogo atento que sempre foi às pautas ambientais e contra a vigência da lógica da predação que aqui sempre praguejou), nos fez atuar e caminhar conjuntamente em muitos embates. Foi assim que uma forte amizade se desenvolveu entre nós.
Quando Mohamed se tornou Pró-Reitor em Extensão, me fez um convite, sem me dar a possibilidade da recusa. Ele queria criar um Conselho que lhe apoiasse na regulamentação das práticas de extensão que, até então, eram ainda fluídas. E queria um grupo que o ajudasse a brecar o que teria que ser brecado e a ampliar o que teria que ser ampliado. A convivência tornou-se, então, ainda mais frequente e me permitiu um conhecimento maior da diversidade da nossa universidade.
Muitas vezes estivemos juntos também como representante docente no Conselho Universitário (Consu), para o qual fui eleito por alguns mandatos, quase sempre convocado por Mohamed. Como já sugeri acima, era difícil dizer não aos seus chamados. A luta pela universidade pública era uma trincheira da qual ele não abria mão.
Não foi só uma vez que seguimos juntos para São Paulo, sempre convidados pela professora Soraya Smaili, ex-Reitora da Unifesp, para participar de atos e atividades do Centro de Cultura Árabe, em São Paulo, que Mohamed dirigiu certo tempo e soube tão bem representar. A afeição que nos aproximava, tornava os nossos encontros sempre momentos que combinavam debate e reflexão, além de consolidar ainda mais a nossa amizade.
Os embates contra os governos estaduais que se esmeram em suas práticas privatistas e de cunho neoliberal (tão a gosto do tucanato que tanto dificulta e infelicita a universidade pública), as batalhas pela recuperação da dignidade acadêmica que, a cada governo, via corroer os salários docentes e funcionários, sem falar na luta pela autonomia universitária. Em todas estas ações lá estava nosso intelectual, uma espécime de biólogo político de origem egípcia que logo se tornou também um brasileiro comprometido com os embates da nossa população trabalhadora, que é quem de fato mantém a universidade pública.
Mas houve um episódio, em especial, em que o então Pró-Reitor Mohamed Habib, mostrou todo o seu compromisso com os povos do mundo, das periferias de onde ele também se originou. Foi quando dois jovens mestrandos haitianos que tinham acabado de finalizar suas dissertações no Brasil, tendo que regressar ao Haiti, corriam efetivo risco de morte, dado o súbito agravamento da crise política do Haiti logo após o terremoto que devastou o país. Era preciso mantê-los no Brasil, até que as condições lá se normalizassem.
Não tive dúvidas a quem recorrer, em nossa Universidade, para ajudar a impedir que o pior ocorresse com os jovens pós-graduandos haitianos. Estávamos em pleno mês de fevereiro, às vésperas do Carnaval, onde esse país que ainda se considerava “feliz”, se preparava para festejar. Mas o caso requeria urgência. O nosso biólogo humanista, que emigrara de seu país por conta dos golpes e das ditaduras no Egito, não esperou o Carnaval chegar, ajudando decisivamente na permanência de modo a garantir que os dois jovens fossem preservados e pudessem dar continuidade aos seus estudos.
Este pequeno texto, então, é para ajudar a recordar, aos seus tantos amigos e amigas, aos que foram seus alunos e alunas, que Mohamed Habib é parte cravada na bela história que a nossa Unicamp vem tanto procurando, passo a passo, construir e preservar.
* Ricardo Antunes é Professor Titular de Sociologia do IFCH/UNICAMP
Divulgação realizada por solicitação do Prof. Caio N. de Toledo (IFCH/Unicamp), na condição de sindicalizado à ADunicamp
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