Opinião | O diabo não tira férias: segue o plano de destruição das universidades federais


Por Carlos Alberto Marques
Nem mesmo Maquiavel teria tanta audácia, mas aqui no país dos terraplanistas e mitômanos tudo pode acontecer. O mosaico de medidas
governamentais para desmantelar as IFES acendeu o sinal de alerta máximo. Basta ver o que fizeram em 2019. O contingenciamento do orçamento (que na hora H foi liberado só depois de um esforço parlamentar, da mobilização social e de dentro das universidades) serviu como uma espécie de tortura prévia, promovida pelo deseducado que comanda o ministério da área e do demolidor e liquidante do Estado brasileiro, o desenvolto ministro da economia.
O conjunto de medidas venenosas cresceu, em várias frentes, e visa transformar em moribundas as universidades federais. É uma Reforma Universitária sem a participação da comunidade universitária e da sociedade. Vejamos algumas medidas.
Asfixia via cortes orçamentários. De 122 bilhões em 2019 passamos para 103 bilhões em 2020, o qual representa uma diminuição drástica de verbas de custeio, na ordem de 40% – sem contar que a de capital já foi insignificante em 2019. Ou seja, as IFES terão que cortar programas e piorar as condições diárias de seu funcionamento.
Reforma da Previdência. Já aprovada, nos fará trabalhar e contribuir por mais tempo, além de aumentar a alíquota mensal, diminuindo os salário e aposentadoria a partir do próximo mês. A garantia de paridade e integralidade ficou dificílima para muitos que contavam com eles. Para os mais novos na carreira, as condições de aposentadoria desenham um futuro de sacrifícios.
Controle do poder e intervenção acadêmica. A MP 914 (regras para eleição de reitor e dirigentes) é uma clara tentativa de controlar o poder dentro das universidades, agredindo sua autonomia de gestão. Em linha de máxima, o presidente da república (e seu ministro da educação) pode controlar administrativa e academicamente até um departamento de ensino, impondo sua doutrina. Nomeia quem ele quiser desde que seu aliado.
Mudança na forma de financiamento. O PL Future-se engendra um novo sistema de financiamento, via fundos privados – nutrido com recursos públicos – direcionados apenas à inovação e ao empreendedorismo. Estreita a atuação e função social da universidade, comprometendo atividades de várias áreas do conhecimento. Não por acaso, o MEC faz uma consulta pública a respeito em pleno mês de janeiro, quando a maior parte da comunidade acadêmica está em férias e desarticulada.
Novo modelo de Gestão. Também o PL Future-se atrofia o modelo atual constitucional de autogestão das universidades. O Programa incentiva a transferência de gestão às Organizações Sociais e FAPs, que supostamente possuiriam mais expertise em governança público-privada. No fundo, o escopo dessa transferência é controlar e direcionar todas as atividades aos novos fins da universidade, previstos no Future-se.
Proibição de Contratação de novos docentes. O primeiro Ofício Circular da SESU (8/1/2020) desse ano foi para comunicar que não serão permitidas novas contratações de professores e técnicos em 2020. Medida drástica e destrutiva, com repercussão negativa no funcionamento de cursos, na sustentabilidade de implementação dos campi, de afastamentos para formação e na reposição de vagas em caso de aposentadorias.
Flexibilização e externalização, via EaD, em até 40%, da integralização curricular. Suprirá a falta de condições na manutenção do ensino, provocadas pela proibição de contratar novos professores e pela nova forma de financiamento das universidades (Future-se), especialmente em determinadas áreas do conhecimento menos atrativas ao mercado.
Redução de jornada com redução de salário dos docentes e TAEs. PEC 186 ou PEC Emergencial. Regras que engessam o gasto governamental e determina a suspensão de direitos e obrigações do Estado, em 3 hipóteses: se houver descumprimento do Teto de Gastos; se for extrapolado o limite da “regra de ouro”; e se forem ultrapassados os limites de gastos com pessoal, previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal. Essa PEC, além da redução de jornada e salário, suspenderá todas as possibilidades de reajuste, concurso e progressão, vedará qualquer lei ou ato que conceda ou autorize o pagamento, com efeito retroativo, de despesa com pessoal, qualquer que seja a natureza da parcela ou benefício.
Desregulamentação da educação superior privada. A joia da coroa para a elite financeira que elegeu esse governo é a liberalização do mercado privado da área educacional. Sem regras que impeçam ou limitem o lucro, diminuirão seus custos oferecendo serviços baratos sem nenhum padrão de qualidade e fiscalização, poderão assim ocupar o espaço da educação superior obtido com a destruição da IFES. Os interesses privados estão hoje, mais do que nunca, dentro da Secretaria de Ensino Superior do MEC.
Ataques à Ciência e cientistas. Feita sob variadas formas, as medidas vão desde os cortes orçamentários, à fusão da Capes com o CNPq, o corte de 18 mil bolsas de PG e o vínculo de concessão de bolsas-Capes à adesão do Future-se. Visando deslegitimar a pesquisa acadêmica, as agressões e os ataques maiores são também verbais, proferidos diariamente por altas autoridades do governo, que imputam à ciência brasileira ineficiência e desperdício de recursos públicos. Mentem e difamam mesmo diante de dados internacionais sobre a qualidade e quantidade de nossa produção
científica.
Asfixia à disseminação e circulação do saber. A portaria MEC n o 2.227 (31/12/2019) limita drasticamente a liberação de docentes, com ou sem ônus financeiro à instituição, para apresentação dos resultados de suas pesquisas em eventos nacionais e internacionais (congressos, colóquios etc.). Uma quase proibição que, além de perversa, dada a burocracia criada, possibilita ainda um controle seletivo de participação e, consequentemente, na própria realização de eventos acadêmicos. Se a intenção é a de economizar recursos, que apresentem os dados. O fato é que tal medida coloca em risco as formas de produção de conhecimento, a dinâmica e essência da universidade e de nosso trabalho, de poder inviabilizar eventos tradicionais e inovadores, além das próprias sociedades científicas.
Ataques aos Sindicatos. Via MP 873, o governo tentou fragilizar as atividades e a estrutura sindical por meio da proibição do desconto em folha das contribuições sindicais – por enquanto revertido por via judicial. Além disso, há uma proposta em discussão no Congresso, com apoio governamental, de reforma sindical, para fragmentar nossa organização e debilitar nossa resistência às perdas de direitos trabalhistas.
Enfim, se puderem liquidam as universidades federais. Como terão dificuldades, desejam no mínimo seu controle ideológico completo aos valores e verdades de uma civilização calcada no obscurantismo religioso em prejuízo à pesquisa científica. Não conseguindo, o plano B é deixá-la em um estado vegetativo ou exposta de tal forma ao mercado educacional, que sua morte será uma questão de tempo. O que não podemos é esperar a próxima peça desse mosaico de destruição.
Carlos Alberto Marques. Professor Titular junto ao Departamento de Metodologia de Ensino (MEN/CED/UFSC). Presidente do Sindicato dos Professores das Universidades Federais de Santa Catarina, Apufsc-Sindical. Gestão 2018/2020.
 
 
 


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