A história da ditadura brasileira não foi passada a limpo, como ocorreu com outros países latino-americanos que viveram a mesma tragédia, e isso permitiu que o entulho autoritário e a ideologia da tutela militar permanecessem latentes na sociedade até os dias de hoje. E, de certa forma, essa sombra do passado contribui para a “naturalização” da violência de Estado que permanece viva contra as populações pobres das periferias urbanas e em regiões rurais.
Essas foram algumas das questões abordadas durante o Seminário Nacional sobre a História do Movimento Docente ocorrido no ADunicamp, nos dias 31 de março e 1° de abril, e que teve como tema “Ditadura: reparação, memória e justiça”. O Seminário foi realizado pelo GTHMD (Grupo de Trabalho de História do Movimento Docente), em conjunto com Cedoc (Centro de Documentação) e com a Comissão da Verdade, instituições do ANDES-SN.
Participantes da primeira mesa do encontro, ocorrida na noite de 31, avaliaram que há uma responsabilidade generalizada da sociedade sobre o silêncio que ainda paira em torno dos chamados “anos de chumbo” da ditadura. E que isso envolve não só as correntes militares autoritárias e seus remanescentes políticos ancorados em partidos e movimentos de extrema-direita, mas também as universidades, institutos de pesquisa, governos progressistas e meios de comunicação em geral.
Participaram da primeira mesa, coordenada pelo 2° vice-presidente da Regional Planalto do ANDES-SN, Luís Augusto Vieira, a professora Ana Maria Estevão (Unesp e Unifesp), o professor da Uneb e 1° vice-presidente do ANDES-SN, Milton Pinheiro, e Sebastião Neto, secretário-executivo do GT dos Trabalhadores/as na Comissão Nacional da Verdade.
“O fato é que temos uma história sem povo. Há milhares de documentos sobre a ditadura, guardados em centenas de caixas no Arquivo Nacional e no Arquivo de São Paulo, entre outros, que não foram sequer organizados até hoje. Os arquivos ainda não foram sequer arranhados. Pouquíssimos pesquisadores se dedicaram a eles e precisaríamos de centenas para desvendar todos os documentos. Então a verdadeira história da ditadura militar está completamente desconhecida”, afirmou Sebastião, que é também coordenador do IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), instituto que se dedica também ao resgate da memória da luta operária no Brasil.
E as informações adormecidas nesses arquivos certamente relatam fatos ainda silenciados sobre a ditadura, na avaliação do professor Mário. “Embora falem em baixa intensidade de violência da ditadura brasileira com relação às ditaduras do Chile e Argentina, temos que lembrar que há um conjunto de circunstâncias que não estão registradas na história. Recentemente, o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) apresentou um dossiê comprovando que houve a matança generalizada de camponeses durante a ditadura. Mais de 1.200 nomes já estão documentados. As ligas camponesas foram brutalmente exterminadas”, informou o professor Milton, lembrando que violências brutais também ainda não registradas pela história oficial foram cometidas contra indígenas e quilombolas.
“Já temos uma quantidade enorme de informações sobre destruição de populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, invasão de territórios. E os milhares de documentos que ainda não foram sequer examinados podem revelar muito mais”, advertiu Sebastião. Comissões da Verdade já têm cadastrados mais de 30 mil nomes de pessoas, entre elas estudantes e professores, que foram de alguma forma vitimadas pela ditadura e que estão computados agora nos processos iniciais de reparação, mas que nunca constaram nos registros oficiais do Estado. “Em outras palavras, temos no brasil, ao contrário da Argentina e Chile, uma dificuldade imensa da história sobre esse conjunto de pessoas torturadas, presas, mortas, exiladas e cerceadas”, apontou Milton.
Entre os mais de 30 mil nomes que têm sido cadastrados pelas Comissões da Verdade, há um grande número de então docentes, estudantes e funcionários/as de universidades brasileiras. “O ANDES-SN defende e trabalha para que essas pesquisas avancem nas nossas universidades”, informou Milton. Segundo ele, há muitos casos de docentes que sofreram retaliação, demissão ou isolamento por causa de suas posições políticas, mas que não constam nas listas oficiais de vítimas da ditadura.
No caso de integrantes das Ligas Camponesas assassinados, torturados ou perseguidos os nomes simplesmente não constam nas listas de vítimas, simplesmente porque não tinham documentos de identificação.
VIOLÊNCIA URBANA
A professora Ana Maria, autora do livro Torre das Guerreiras, no qual ela relata os seus anos de prisão durante a ditadura, ao lado da ex-presidenta Dilma Roussef no Presídio Tiradentes, em São Paulo, descreveu a repressão da ditadura contra as populações das periferias urbanas, perpetrada com apoio do chamados Esquadrões da Morte, braços armados e clandestinos da polícia.
Essa repressão que, na avaliação dela, nunca foi devidamente contida e combatida pelo Estado brasileiro, é uma das fontes originárias da violência policial desfechada até hoje contra as populações pobres e negras das cidades do país.
Os assassinatos dos Esquadrões da Morte eram desfechados não só contra os opositores do regime, mas também contra as lideranças populares emergentes que de alguma forma se opunham ao autoritarismo e à violência policial.
Um caso simbólico relatado pela professora foi o do líder popular Pato N´Água, apitador que comandava a bateria da escola de samba Vai-Vai, fundador da torcida organizada do Corinthians e reconhecido como um dos maiores sambistas brasileiros. Pato N´Água saiu de casa para um encontro, em 1969, ano de recrudescimento total da repressão, desapareceu e foi encontrado morto no dia seguinte na Lagoa de Suzano.
“Sua morte nunca foi investigada e elucidada. Mas a conversa que sempre correu é que ele foi executado pelo Esquadrão da Morte paulista, comandado pelo delegado da polícia Civil Sérgio Fleury, um dos mais emblemáticos assassinos e torturadores da ditadura”. A morte de Pato N´Água foi imortalizada na canção “O Bexiga está de Luto”, do compositor e sambista Geraldo Filme, que a professora apresentou ao auditório do Seminário, no início de sua palestra.
“A violência da ditadura não foi só com operários, estudantes e militantes, mas foi principalmente com homens pretos e pobres da periferia. Essa violência corria solta nas periferias, mas a ditadura só começou a ser denunciada e combatida no mundo quando atingiu a classe média”, disse ela. “Na verdade, a invenção de violência e tortura no Brasil, o uso por parte do Estado da violência, existe desde o brasil colônia, permanece no império e se mantém até hoje. Era a forma como os senhores de escravos mantinham a submissão, através do terror e da violência. Inspirar a obediência através do medo se mantém dentro da estrutura da sociedade de classe. Nunca foi combatida a violência contra negros, indígenas e pobres.”
Ao longo de toda a década de 1960 as sociedades fervilhavam pelo mundo, com grandes manifestações e mobilizações, com a Guerra Fria já instalada. Com o golpe militar e o início da ditadura, a violência brasileira ganhou visibilidade mundial. “Mas isso só aconteceu quando chegou à classe média. Só que ela já estava institucionalizada no país. Toda a cultura feita pelos pobres e negros já era totalmente reprimida”, afirmou.
A “tortura e as atrocidades estão na história” da humanidade, “basta lembrar a Inquisição” da Igreja Católica. “Mas, depois disso, foi sendo abolida no mundo. Só que o século XX viu a retomada dessas práticas nas guerras coloniais e isso se torna novamente um comportamento comum e aceito. Quando aparecem os regimes autoritários a tortura volta a ser colocada como normal ‘para manter o regime’.”
A história da tortura praticada por militares e pela polícia no Brasil só foi relatada “pelos vencidos”, até porque, segundo a professora, também “cobre de vergonha” aqueles que a praticam. “No Brasil, mesmo depois de 38 anos da posse de um civil na presidência, o episódio da tortura volta a irromper na sociedade. É fundamental que seja denunciada e combatida. Temos que tirar os esqueletos do armário. E os esqueletos são os mortos e desaparecidos. Os militares têm obrigação de mostrar os documentos de tudo o que têm sobre os desaparecidos. Isso, de certa forma, seria um resgate de parte da atuação dos militares”, questionou a professora.
HOMENAGENS DA DITADURA
A revisão histórica e a busca pela verdadeira História da ditadura brasileira, passa necessariamente pelo desmonte das inúmeras homenagens aos ditadores e seus sequazes que ainda permanecem em praças, ruas e edificações por cidades de todo o Brasil. A professora Michele Schultz, dirigente da Adusp Seção Sindical, da Regional de São Paulo do ANDES-SN e que integrou a Mesa de Abertura do Seminário, defendeu o reforço de mobilizações para extinguir homenagens desse tipo que ainda existem em diversas universidades brasileiras.
Segundo ela, o ANDES-SN tem trabalhado nessa direção em todo o país e já existem ações em andamento em diversas universidades públicas. “Temos que reivindicar a retirada de todas as homenagens à ditadura militar”. Ela lembrou que isso já começa a ocorrer em algumas universidades como na Unicamp.
A presidenta da ADunicamp, professora Sílvia Gatti (IB), fez um relato, na abertura do Seminário, do longo trabalho capitaneado pelo professor Caio Navarro de Toledo (IFCH) e que resultou na revogação do título de doutor honoris causa concedido ao então ministro da Educação da ditadura militar, coronel Jarbas Passarinho.
A coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU), Elisiene Lobo, que também integrou a Mesa de Abertura, ressaltou a importância de reforçar permanentemente os debates e denúncias sobre a ditadura. “Muitas pessoas ainda não se dão conta, hoje em dia, daquilo que realmente aconteceu. E é isso que abre caminho para esses retornos constantes do pensamento autoritário no Brasil.”
2º dia
Resgate da memória sindical nas universidades
O segundo dia do Seminário foi dedicado à troca de informações e a debates sobre o aprimoramento das práticas de arquivamento de conteúdos e da história dos movimentos sindicais docentes nas universidades brasileiras. Além do lançamento da “Cartilha de Boas Práticas Arquivísticas do ANDES-SN”, editada pelo Cedoc (Centro de Documentação) da entidade, foi feito um longo relato das técnicas de coleta e arquivamento de depoimentos orais que têm sido desenvolvidas pelo GTHMD (Grupo de Trabalho de História do Movimento Docente).
O coordenador da Mesa, professor Luiz Henrique Blume, 3° secretário do Sindicato Nacional e diretor do Cedoc, ressaltou a urgência do trabalho de documentação nas seções sindicais do ANDES-SN nas universidades. “Temos 41 anos de existência e seções com mais tempo. É preciso que a gente comece a cuidar, a tratar da nossa memória sindical. Muitos colegas já se aposentaram ou estão se aposentando. Precisamos ouvi-los, coletar relatos, pegar documentos.”
O professor Blume lembrou que o Cedoc e o GTHMD já haviam iniciado um trabalho nesse sentido, mas que foi paralisado durante a pandemia e retorna agora. “Mas o que nós percebemos é que se trabalharmos só a partir da sede, por questões operacionais mesmo acabaremos nos concentrando apenas em docentes da UNB.” Porém, apontou ele, há uma variedade muito grande de experiências espalhadas pelo Brasil.
A partir disso, o ANDES-SN, começou a desenvolver um processo para incentivar a participação das seções sindicais, não só para a coleta de depoimentos relativos ao Sindicato Nacional. Daí a decisão de produzir a cartilha e apresentar as metodologias que vêm sendo debatidas e sistematizadas para a coleta, arquivamento e utilização de depoimentos orais.
O professor lembrou que essas ações são fundamentais, uma vez que muitas seções sindicais ainda não mantêm uma pratica sistematizada de resgate e arquivamento de sua memória histórica. “E temos que garantir que o armazenamento dos conteúdos feitos pela seção sindical fique na seção sindical.”
Além das questões práticas, de metodologia de coleta e armazenamento, o resgate da memória exige um olhar sociológico e político. “Quando falamos de memória, não estamos falando do passado, mas do presente. No presente é que decidimos que fato vamos lembrar. E a memória nunca é pessoal, mas coletiva. Por isso é essencial trazermos olhares e experiências diferentes. Como cada depoente viu o mesmo fato? Por isso, na história oral o significado passa a ser mais importante do que os próprios fatos”, ponderou.
DECISÕES
Com base nas apresentações e debates realizados nos dois dias do Seminário, a Plenária realizada no final do encontro, elaborou o seguinte documento com as decisões indicadas para serem tomadas pela direção do ANDES-SN e por seções sindicais:
A – Divulgar para seções sindicais os processos de revogação de títulos honoris causa, como são exemplos os casos da UFRGS, Unicamp e UFRJ, para que seja reproduzido em outras seções sindicais;
A1 – Promover ações de comunicação para a divulgação de processos que estão em curso ou já foram concluídos.
A2 – Divulgar os repositórios digitais sobre a repressão para as seções sindicais, para ser acessado o mais amplamente possível.
A3 – Realizar levantamento de pessoas das universidades que possam ser incluídas nos novos casos de anistia que estão sendo revistos.
A4 – Organizar reunião com a Comissão Nacional de Anistia para discutir esses casos.
A5 – Construir uma política de memória do ANDES-SN com parâmetros de arquivamento, registro, preservação e divulgação.
A6 – Que as regionais, conjuntamente com seções sindicais, promovam ações itinerantes como rodas de conversa, saraus, “contação de história do movimento docente” com convidados para relatos de experiência.
B – Divulgar repositório digital sobre a repressão para ser acessado o mais amplamente possível.
Em breve o ANDES-SN realizará a divulgação do relatório completo do encontro.
GALERIA
Fotos: Paula Vianna/ADunicamp
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