‘Aqui acontece uma revolução’, sentencia Sérgio Ferro sobre os assentamentos em Americana/SP


Na foto que abre a matéria: (da esquerda para a direita) Jânio Carneiro, Valdemir Lúcio, Sérgio Ferro, Victor Chinaglia e Marcos Tognon

“O que acontece aqui é um processo revolucionário. É uma revolução que não está acontecendo apenas aqui, mas em várias regiões da América Latina e em muitos outros países.” Essa avaliação foi feita pelo arquiteto-urbanista brasileiro Sérgio Ferro, uma das grandes referências mundiais da arquitetura social e das artes plásticas, durante visita realizada em maio ao conjunto de dois assentamentos e um acampamento na região do chamado Pós-represa, no município de Americana, quase na divisa com Paulínia. A ADunicamp acompanhou a visita.

Desde que deixou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, afastado por razões políticas em 1970, Sérgio Ferro radicou-se na França e lecionou História da Arte e da Arquitetura na École d´Arquiteture de Grenoblie até 2003, quando se aposentou. Nas artes plásticas continua ativo e tem pinturas expostas em alguns dos principais museus internacionais do mundo.

Ele veio ao Brasil agora para realizar uma série de cursos e seminários. E fez questão de visitar os assentamentos quando soube, em um desses encontros, que tem sido colocado em prática ali, há 12 anos, um modelo de gestão comunitária inspirado em suas teses sobre arquitetura e construção civil. Um de seus primeiros livros, publicado na década de 1970, “O Desenho e o Canteiro”, é considerado hoje um dos mais importantes textos de arquitetura brasileira do século XX. O livro, uma das obras inspiradoras do modelo de gestão nos assentamentos de Americana, foi o que deu início a uma reflexão sobre a produção e a gestão social da arquitetura e da construção civil.

Os dois assentamentos que Sérgio Ferro visitou, Monte Verde e Milton Santos, e o acampamento Roseli Nunes reúnem cerca de três mil famílias e estão instalados ali quatro instrumentos de gestão e trabalho da comunidade: a Escola Livre e Espaço Sérgio Ferro, a Cooperativa Braço Forte, a iAcia (Instituto Pós-represa) e a cooperativa A Camponesa.

ORIGEM E GESTÃO

Durante o encontro, o arquiteto-urbanista Victor Chinaglia, um dos fundadores e atual presidente da Braço Forte, e que também atua na coordenação dos trabalhos e das mobilizações da comunidade, relatou a história dos assentamentos, que começou há mais de 17 anos, e a do acampamento, mais recente. Os assentamentos hoje já estão em fase final de regularização (leia abaixo).

“A cooperativa nasceu com base nos trabalhos de Sérgio Ferro, e por isso demos à nossa Escola Livre o nome dele. Vários de seus trabalhos nos deram a base teórica e nós estamos há 12 anos colocando isso em prática aqui. A orientação que vem dos trabalhos dele é a de não separar a arte do ofício, o trabalho intelectual do trabalho braçal. Isso não existe para nós. Todo trabalho é um trabalho intelectual e na nossa cooperativa nós não temos essa separação. Todas as ações e decisões são tomadas em conjunto, por todos”, afirmou Victor.

O presidente da iAcia, Jânio Carneiro de Oliveira, liderança dos assentamentos que chegou ali há 17 anos, durante as primeiras ocupações do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) no Milton Santos e Monte Verde, e que hoje integra a Central de Movimentos de Luta pela Terra, apontou algumas das principais regras aplicadas no trabalho do dia a dia.

“Tanto nas cooperativas como na fábrica de tijolos não tem hierarquia. Tem uma forma de gestão totalmente horizontal. Tanto que às vezes as pessoas até se surpreendem quando atuamos em algumas obras, pois o tratamento é exatamente igual de arquitetos e engenheiros e o pessoal que pega no pesado. Todo mundo trabalha e pensa. As ideias são discutidas em grupo e quase sempre as propostas de todo o pessoal que está ali é incorporada”, afirmou Jânio. E, dirigindo-se a Sérgio Ferro: “O teu nome é muito conhecido aqui, está na Sala de Aula, na nossa biblioteca e sempre que podemos discutimos tuas ideias com o pessoal. Está boca do povo. Por isso, quando o Victor comunicou que você viria, uma pessoa com a tua importância aqui com a gente, ninguém acreditou muito. Mas agora está todo mundo aí, ó, acreditando que é verdade”, disse ele, apontando para as pessoas que se amontoavam na frente da sede da iAcia e da Braço Forte, onde Sérgio Ferro foi recebido.

O arquiteto-urbanista Marcos Tognon, professor da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, e que integra a equipe técnica de apoio aos trabalhos da comunidade, lembrou que os assentamentos e o acampamento hoje são uma referência importante também para seus alunos e alunas. E também para estudantes do Cotil (Colégio Técnico de Limeira) da Unicamp, que dá apoio técnico por intermédio da professora Denise Bittar.

“Hoje sabemos que a arquitetura, como tudo na vida está se transformando em grande parte em virtual. As pessoas ficam trabalhando na tela do computador e achando que aquilo é a realidade. Quando na verdade a grande realidade é isso aqui. É a realidade das pessoas que precisam de moradia com qualidade, de respeito e trabalho com o meio ambiente. Então o que vivemos aqui nos trouxe uma série de parâmetros para a gente pensar no ensino, na formação. E o desafio está colocado. Por isso, trazemos sempre nossos estudantes para conhecer essa realidade”, relatou Tognon.

O arquiteto-urbanista Pedro Fiori, professor da Unifesp e que acompanhou Sérgio Ferro na visita, tem uma longa trajetória na implantação de projetos inovadores de habitação social, em São Paulo e em vários outros estados brasileiros. Fortemente influenciado pelo pensamento de Sérgio Ferro, Fiori afirmou que acompanha há anos, à distância e por meio de relatos, os trabalhos desenvolvidos nos assentamentos de Americana.

“O que vemos aqui é a prática desse pensamento crítico da arquitetura. A arquitetura feita com os trabalhadores, pensando o arquiteto como alguém que é do time dos construtores e não como alguém que está separado fora do canteiro de obras. A vivência, inspirada em Sérgio Ferro, de redescobrir arquitetura como obra coletiva, como um espaço também de emancipação social, de pesquisa de possibilidades técnicas e estéticas. Além da casa, todos têm também o direito à beleza, direito às condições dignas de moradia, de relação com a natureza”, defendeu Fiori.

SEMENTE DO FUTURO

Após visitar o Monte Verde, o Roseli Nunes, a Braço Forte e conhecer os detalhes dos trabalhos desenvolvidos pela comunidade, entre eles a fábrica de tijolos de solo-cimento em fase final de implantação (leia abaixo) Sérgio Ferro fez um longo relato sobre o que viu e sentiu.

“O que vi aqui me traz o sentimento de muita esperança, não é uma esperança adiada para um futuro longínquo, mas é uma esperança que já começa a ser uma realidade. Vocês são a semente, a infância de um momento que tem que ser ampliado, que tem que se ampliar muito porque é daqui, desse trabalho multidisciplinar, multissocial, que nascerá uma sociedade futura. Sobretudo baseada no trabalho comum, no trabalho coletivo, no trabalho de cooperação, onde todas as capacidades sejam elas simplesmente manuais, sejam elas intelectuais e todas elas num plano de igualdade que essas coisas devem ter”, afirmou.

Para ele, o modelo de gestão e de trabalho nos assentamentos altera completamente o regime das classes sociais, de “divisão das pessoas”.

Sérgio Ferro conversou longamente com moradores/as, andou pelas ruas e caminhos, almoçou na cozinha coletiva do Roseli Nunes e avaliou: “Vocês põem todos aqui numa condição de igualdade, todos aqui se sentem bem, se sentem em casa, com uma proposta que têm aqui, sem distinção, sem hierarquia nenhuma. Essa comunidade, essa fraternidade, essa simplicidade ultra complexa, é de certa maneira indispensável para mudar a sociedade”.

Estudioso do marxismo, a partir do qual fundamenta muitos de seus trabalhos, inclusive nas artes plásticas, Sérgio Ferro lembrou que o próprio Karl Marx, em certa etapa da vida, mudou algumas de suas teses, após as rebeliões da Comuna de Paris. “Marx percebeu que sua teoria sobre as etapas de evolução pelo qual o capitalismo teria que passar, antes que pudesse ocorrer um processo revolucionário, não se aplicavam ao que ocorreu na Comuna. Ele se admirou com aquela luta espontânea. A Comuna não fez mais que recolher as necessidades sociais, as necessidades de base da sociedade naquele momento. E é isso o que está sendo feito aqui e em tantas outras comunidades como essa, que hoje se multiplicam pelo mundo.”

Ainda lembrando Marx e a Comuna, Sérgio Ferro concluiu: “Marx disse: ‘O grande feito da comuna é que ela existe’. E eu vou lhes dizer essa mesma coisa aqui e agora. O grande feito de vocês é que vocês existem. Criam essa pedra fundamental, o elemento fundamental para a construção de uma sociedade mais humana e mais justa. Então, quando eu digo vocês já são a revolução eu não estou fazendo literatura nem peça de retórica. Vocês e outras iniciativas desse tipo são o germe de uma transformação social.” E, por fim, nãos sem ironia e humor, arrematou: “Se é que ainda há tempo para essa transformação, antes que o mundo acabe.”

Fábrica de tijolos: um retrato do espírito cooperativo

A fábrica de tijolos e placas construtivas de solo-cimento, que está na fase final de testes e deve entrar em produção acelerada nos próximos meses, é um modelo da forma como a organização e a gestão dos trabalhos ocorre nos assentamentos e no acampamento. E também nas duas cooperativas: a Braço Forte, de projetos e construção; e A Camponesa, de produção e comercialização de produtos agrícolas sem agrotóxicos.

A proposta inicial, defendida por Victor Chinaglia e outros/as integrantes da Braço Forte, era a de trabalhar com placas leves e blocos de concreto, para dar suporte às famílias na construção ou reforma de suas casas.

Mas ocorreu, dentro da cooperativa, um movimento de trabalhadores/as em defesa da utilização da terra como matéria prima. Mas há, historicamente no Brasil, uma resistência a formas construtivas que saiam dos padrões tradicionais. Por isso, um outro grupo dentro da cooperativa, incluindo o próprio arquiteto, resistiram duramente a essa ideia. “Aí, pessoas da cooperativa e da comunidade vinham me mostrar fogão a lenha, vasilhas e blocos construídos com barro. Ou seja, com o argumento de que o uso da terra está bem ancorado na cultura construtiva do Brasil. Tivemos que abrir os olhos”, relata Chinaglia.

Só que nem ele e nem os outros técnicos que apoiavam a cooperativa naquele momento tinham experiência com a terra e o solo-cimento. “O medo era que nos metêssemos nessa área desconhecida e que acabássemos fazendo alguma besteira, tendo casa trincada, essas coisas”, diz Chinaglia.

Diante disso, decidiram procurar e pedir auxílio a profissionais com conhecimento na área e encontraram dois arquitetos com especialidade no uso da terra, Marcos Tognon, da Unicamp e Valdemir Lucio, da Escola da Cidade.

Tognon trabalha com preservação do patrimônio e diz que sempre se interessou em formas antigas de construção, motivo que o levou a aprender e trabalhar com a terra, material que ele considera “admirável”. “Aqui, passamos a pensar em trabalhar com esse material e também com materiais modernos. A busca é essa: a de criação de uma arquitetura mais humana”, relatou ele. “E o Sérgio Ferro sempre foi uma referência ética essencial para nós, quando se fala em arquitetura e prática. Então, quando chegamos aqui, e vimos as ideias dele sendo colocadas em prática, nos apaixonamos.”

Valdemir tem uma longa experiência em pré-fabricados leves com uso da argamassa armada, inclusive no “chão de fábrica” como diz, e trabalhou com uma das principais referenciais nacionais no uso desse material, o arquiteto João da Gama Filgueiras Lima, conhecido como Lelé. “Aqui temos agora a oportunidade de integrar a questão da terra com a pré-fabricação leve e, mais do que isso, podemos fazer que a manufatura seja um processo de integração de trabalhadores e trabalhadoras. Que trabalhadores e trabalhadoras tenham os processos de produção e o controle econômico disso em suas mãos.”

TECNOLOGIA

A arquitetura de terra exige um conhecimento tecnológico e uma estrutura de análise, aos quais Tognon e Valdemir logo perceberam que a cooperativa não tinha acesso naquele momento. Assim, trouxeram também as arquitetas-urbanistas Jane Tassinari, que lecionava na época na Universidade São Francisco, e Denise Álvares Bittar, do Cotil (Colégio Técnico de Limeira) da Unicamp, ambas com ampla experiência em análise de materiais.

A análise do material é uma etapa essencial, que exige laboratórios especiais, para garantir a proporção exata dos diferentes tipos de terra na mistura com o cimento para dar segurança e qualidade final ao produto. As primeiras análises começaram a ser feitas em laboratórios da Universidade São Francisco, mas com o afastamento de Jane daquela universidade passaram a ser feitas em laboratório cedido pelo Cotil, onde são feitas até hoje.

Agora, já na etapa final de estudos e experimentos, a cooperativa começa arrecadar recursos para a compra de equipamentos que permitirão a fabricação de quatro mil tijolos por dia, além de placas construtivas de solo-cimento. “A proposta inicial é produzir para nossas comunidades, para sindicatos, para movimentos sociais e outros assentamentos. Só aqui, temos quatro movimentos sociais e prestamos serviços de arquitetura e construção para todos eles”, afirma o presidente da iAcia, Jânio Carneiro.

A CAMPONESA

Jânio lembra que, dentro dos mesmos princípios da Braço Forte, foi criada também “A Camponesa – cooperativa de produtos livres de agrotóxico”. Quando ocorreu a ocupação mais recente, do Roseli Nunes, há sete anos, Jânio tinha consciência que teriam que encontrar opções de trabalho comum e imediato para as pessoas. “Então começamos a unir a turma para produzir nas áreas de plantio do Milton Santos, e daí surgiu A Camponesa.”

Os plantios são feitos a partir de pequenos espaços, com uma gestão comum que decide em conjunto aquilo que deve ser plantado em cada área. A produção hoje alimenta principalmente a comunidade, mas como a região abriga cerca de três mil famílias, grande parte com casais já com empregos fora, ajuda a abastecer também parte dessas famílias.

Victor aponta que a proposta é construída sobre o conceito de que o território não é propriedade privada. “Cada família tem o seu espaço privado, que é a casa, mas as áreas de plantio e produção são comuns, nas duas cooperativas. A proposta é fazer com que as pessoas compreendam e acentuem a noção de território, não só na produção propriamente dita, mas também na cultura, na religião, no aprendizado, no convívio, e assim por diante.”

Uma história que começa há 17 anos

A história dos assentamentos Monte Verde e Milton Santos e da ocupação Roseli Nunes, que hoje abrigam cerca de três mil famílias, na área do chamado Pós-Represa, às margens da Represa do Salto Grande, na região da tríplice fronteira (Americana, Paulínia e Cosmópolis) começa em 2005.

Naquele ano, ocorreu uma ocupação do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) na vizinha cidade de Limeira, que depois seria regularizada pelo Incra e hoje abriga dezenas de famílias no Assentamento Elizabeth Teixeira. Mas, devido à grande quantidade de famílias da ocupação inicial, 75 delas seguiram, em 2006, para a área de Americana que daria origem ao hoje Assentamento Milton Santos.

A área, em meio a uma vasta plantação de cana-de-açúcar da Usina Ester, havia sido desapropriada pelo INSS anos antes, mas permaneceu durante décadas em litígio judicial.

A ocupação da área atraiu, ao longo dos meses e anos seguintes, centenas de famílias que se instalaram em terras, também em litígio e improdutivas, às margens da Rodovia Ivo Macris, que liga Americana a Paulínia. E daí nasceu o assentamento Monte Verde, hoje estruturado como um bairro, com comércios, linhas de ônibus, luz e internet recentes, e que entra agora na fase final de regularização.

O acampamento Roseli Nunes nasceu há sete anos, a partir de ocupação feita por 50 famílias que já não tinham mais espaço para se acomodar no Monte Verde. Hoje, ele abriga 80 famílias. 

GALERIA
Fotos: Alexandre Sallati


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