A universidade, a greve e as punições


[box type=”info”]Divulgado por solicitação do Prof. Gustavo Tenório Cunha (FCM), na condição de sindicalizado. O conteúdo do texto não reflete necessariamente a posição da ADunicamp, de sua Diretoria ou de qualquer outra instância da entidade. Toda e qualquer responsabilidade por afirmações e juízos emitidos cabe unicamente ao autor do texto.[/box]

No último mês, vivemos situações de tensão na Unicamp. Uma parte dos docentes parece ter se sentido muito incomodada com as ocupações e mobilizações estudantis. Apesar de pontuais, ouvi notícias de comportamentos inadequados tanto por parte de alguns docentes quanto de alguns estudantes. Uma primeira pergunta que me parece central é: como lidar com situações de conflito em uma organização? E para responder de forma minimamente responsável sobre como lidar com um problema, é necessário compreender o problema. Desta forma, a segunda pergunta é: por que aumentou e/ou se instalou uma conflitividade entre professores e estudantes dentro da universidade?
Para quem trabalha com o tema da gestão, a ocorrência de conflitos e diferenças é um fato esperado. O que não significa dizer que conflitos precisem disparar uma escalada de sentimentos de ódio ou agressões. Quando isso ocorre, pode ser um indicador de que os mecanismos normais de negociação e participação não estão funcionando adequadamente. Às vezes, os mecanismos de diálogo tornam-se insuficientes (por exemplo, devido a um crescimento da organização). Às vezes, as pessoas e suas demandas mudam na sociedade, trazendo novos elementos para dentro da organização. Às vezes, os mecanismos de negociação instituídos se viciam, de forma que um mesmo grupo controla excessivamente o que deveria ser um espaço de pluralidade e composição. O espaço coletivo, embora potencialmente democrático, torna-se momentaneamente inefetivo e os grupos alijados procuram outras formas de expressão. No caso da Unicamp, se investigarmos algumas dessas hipóteses, talvez possamos compreender melhor as causas da conflitividade.
Nas organizações, podemos supor que as pessoas de dentro e de fora (sociedade) têm interesses comuns. Gestores, estudantes, professores, trabalhadores e a “sociedade” (com seus inúmeros grupos sociais) estão, em alguma medida, do mesmo lado. Porém estão, ao mesmo tempo, de lados opostos em diversos aspectos. Se a Unicamp ganhasse um prêmio de três orçamentos e fizéssemos um grande processo de debate para discutir o que fazer com esses recursos, haveria, sem demérito algum para nenhum segmento, propostas diferentes, com enfoques que acentuariam respectivamente os interesses de cada grupo. Por isso se diz que a gestão de uma organização é sempre uma tarefa política e que qualquer segmento que lograr poder “demais” pode comprometer a dinâmica organizacional. Quando isso ocorre, a crônica submissão de um grupo face a outro vai levar ao descompromisso e ao esgarçamento das relações na organização, com progressivo desinvestimento do grupo subjugado. Se alguns tipos de organização massacram as pessoas (e se perpetuam), é porque os grupos subjugados não têm outra opção de sobrevivência e, também, porque geralmente a demanda desse tipo organização é por uma parte muito pequena do potencial humano. Organizações educacionais e de saúde simplesmente prejudicam sua qualidade quando tentam funcionar dessa forma radicalmente vertical (por isto, a importação de modelos de gestão e culturas empresariais para áreas de Educação e Saúde geralmente levam a situações de degradação organizacional).
No entanto, buscar um equilíbrio dinâmico e criativo entre grupos diferentes dentro de uma organização exige um aprendizado coletivo, exige a construção de instâncias (perenes e provisórias) capazes de dar conta de conflitos e construir contratos e compromissos. Este aprendizado é uma tarefa importante em todas as organizações, mas na área educacional é essencial. É por onde podemos dizer que temos algum compromisso com a formação de cidadãos e podemos perceber a forte interdependência entre as pessoas (na organização e na sociedade). Obviamente, isso não é fácil. A universidade espelha desafios da sociedade. Mesmo aqui, algumas vezes, as dificuldades nesse aprendizado coletivo levam ao delírio de que seria preciso buscar regras idealmente perfeitas, que mitologicamente seriam capazes de substituir a negociação e a vida política na organização. Mas as regras, embora necessárias, sempre refletem contratos e compromissos construídos politicamente. Contratos que também envelhecem ou podem espelhar determinada cultura organizacional e correlação de forças que se modifica, assim como as demandas sociais para a organização também mudam. Quando as diferenças alcançam o conflito, geralmente precisamos rever os instrumentos de gestão, as regras e os contratos, assim como as relações de poder.
Um aspecto importante para a democracia em qualquer organização é a possibilidade de se interrogar sobre os resultados. Muitas vezes, objetos e objetivos intermediários calam as perguntas importantes da organização, como, no nosso caso: O “produtivismo” científico tem trazido quais resultados? Estimular a competição por notas tem levado a qual tipo de Educação? Qual profissional? Qual pesquisador? Muitas vezes, as instituições, notadamente aquelas que são consideradas de excelência, desenvolvem certa dificuldade de autocrítica. Algumas perguntas ficam mais difíceis de serem feitas. E as respostas não são as mesmas para cada grupo dentro da universidade. Quando pensamos em conflitos entre docentes e estudantes, temos que apontar uma peculiaridade: há uma enorme concentração de poder em um dos polos. O compromisso com a organização convida o polo mais poderoso, diante de um esgarçamento das relações, a uma responsabilidade maior. A um esforço maior. Os docentes têm a obrigação de se constituírem como professores e a olharem a situação com responsabilidade pedagógica. O que não significa aceitar tudo (isto seria confortável, mas irresponsável do ponto de vista pedagógico e político-institucional).
Sobre o cotidiano das relações entre professores e estudantes, que podem acumular ressentimentos e descompromissos mútuos, gostaria de compartilhar uma história pessoal: quando era estudante de medicina nesta universidade, tive um professor da área de Exatas. Era uma disciplina de serviço oferecida para a Medicina. Lembro-me das metáforas criativas que ele utilizou para apresentar seu conteúdo. Lembro-me da criativa capacidade de conectar o conteúdo com o contexto da época e da simpatia e coloquialidade que estabelecia com as turmas. Lembro-me do simpático apelido pelo qual era conhecido. Acho que posso defini-lo como um bom professor. Porém, no ano seguinte, quem ofereceu essa mesma disciplina foi uma professora do mesmo Instituto. Ela reprovou, se não me falha a memória, mais de 50% dos alunos. Lembro-me que fui conversar com ela, junto com outros alunos. Ela nos explicou que a (alta) taxa de reprovação era justamente um indicador da (alta) qualidade de seu trabalho como professora. E insinuou uma crítica ao colega que a antecedera. Já naquela época me pareceu estranho que alguém no papel de educador associasse a sua qualidade pedagógica (de modo diretamente proporcional) à taxa de reprovação. É como se um médico associasse a qualidade de seu trabalho à mortalidade dos pacientes, justificando altas taxas com o “cumprimento do protocolo de modo adequado”. E não estou tampouco dizendo que o contrário (taxa de aprovação) seria o único parâmetro de qualidade. Mas certamente reprovação não pode sê-lo. Não é nem necessário recorrer à excelência da nossa Faculdade de Educação para saber que associar sucesso pedagógico à taxa de reprovação é um equívoco. A avaliação deveria ser apenas um dos instrumentos dentro do processo pedagógico. Posso dizer também que, na minha percepção à época, houve um prazer perverso da professora em exercer aquele poder sobre os alunos que reprovara. A disciplina foi cancelada e oferecida para a turma, pela própria Faculdade de Medicina, no ano seguinte.
Eu poderia citar inúmeros outros exemplos semelhantes. Algumas situações que eram aceitáveis há 20 anos, hoje em dia não são mais. Já tive aulas excelentes e agradáveis com professores que fumavam durante a aula. Apesar de nunca ter gostado de fumaça de cigarro, aquela situação não me incomodava, assim como não incomodava a maioria. Hoje, no entanto, isso não seria mais aceitável socialmente, principalmente em respeito às pessoas que não gostariam de fumar indiretamente para assistiram uma aula (mesmo que estejam em minoria). As relações de gênero, as relações de classe e étnicas estão em debate na sociedade. Provavelmente, existem muitos hábitos duvidosos e menos evidentes nas relações entre professores e estudantes que precisam ser revistos, mesmo que tenham sido aceitáveis durante muito tempo.
Nas profissões onde as relações humanas constituem o próprio objeto de trabalho, perceber e saber lidar com os afetos produzidos é essencial. Do contrário, podem tornar-se rotineiras situações de abuso de poder. E os abusos, por sua vez, podem se tornar parte da cultura organizacional. Neste aspecto, o “modo” de fazer a gestão, os tipos de dispositivos capazes de perceber e lidar com problemas e o recorte do objeto de trabalho dos professores, ganham grande importância: se a lógica fragmentadora da linha de produção fabril contamina a gestão, fragiliza-se o compromisso com a Educação, caminha-se para uma lógica de treinamento. Ensinamos apenas a dizerem o que queremos ouvir. Uma situação de abuso de poder pode não afetar o adestramento, mas é desastroso para uma educação cidadã.
Dito isso, o desejo de punição como solução de conflitos, que se faz presente no discurso de alguns docentes (e em parte da sociedade), pode ser entendido como sintoma de uma dificuldade de compreender a dinâmica organizacional. Seria uma resposta simplista para situações complexas. Não estou dizendo que não possa nem deva haver punições para docentes, estudantes ou funcionários que eventualmente tenham cometido agressões. Mas sim que, caso ocorram, não são uma solução para as prováveis causas da conflitividade que se instalou. Precisamos, os docentes, de um esforço tanto de diálogo com estudantes, como de reflexão crítica. Os momentos de greve são oportunidades para pensarmos sobre tudo isto. Oportunidades para novas conversas sobre a vida na universidade, sobre nossas finalidades comuns como universidade pública (e os riscos diante das políticas do governo estadual e federal). Oportunidades para pensarmos como dialogar com a sociedade e a inserção da universidade nos projetos de Brasil que estão em disputa na sociedade.
Prof. Dr. Gustavo Tenório Cunha
Departamento de Saúde Coletiva / FCM UNICAMP
Campinas,  Julho de 2016


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