No dia 12 de agosto, o governador do Estado de São Paulo encaminhou à Assembleia Legislativa um projeto de lei que vem dando o que falar. Num único documento, o PL 529/2020 eleva tributos estaduais (ICMS, ITCMD, IPVA), busca autorização para a venda de inúmeros imóveis integrantes do patrimônio do Estado, amplia a base de securitização de recebíveis (venda de receitas futuras com grande desconto), apresenta programa de demissão de servidores públicos, altera o sistema de fundos do Estado para retirar-lhe recursos, extingue autarquias, fundações e empresas, todas ligadas à prestação estatal de serviços sociais de saúde, habitação, pesquisa, preservação do meio ambiente, entre outras proposições.
O governo fundamenta esse variado pacote de medidas na necessidade de fazer frente à expectativa de déficit fiscal para o exercício de 2021, orçado em cerca de 10 bilhões de reais.
O projeto, que por reunir assuntos tão diversos é um verdadeiro Frankenstein, não é acompanhado de estudo explicativo e demonstrativo do déficit projetado para 2021, tampouco está instruído com qualquer pesquisa que apresente e justifique a eleição do rol de medidas alinhadas. O projeto não traz nem mesmo a manifestação técnica das Secretarias de Estado responsáveis pelas instituições que se pretende extinguir.
A despeito da proposição ter chegado à Casa Legislativa despida de elementos de convicção – além da simples relação escrita de motivos, nada mais elaborado que uma redação escolar -, a iniciativa governamental, incrivelmente, já mereceu editoriais de apoio dos dois maiores jornais paulistas: a Folha de S.Paulo e O Estado de São Paulo, o que revela o fraco grau de exigência democrática da grande imprensa paulista para abonar propostas governamentais. Uma pena, porque o exercício analítico e crítico é aspecto indissociável do jornalismo competente.
O projeto de lei em questão suscita muitas dúvidas que não podem passar despercebidas do analista atento e responsável. Questões de ordem econômica, administrativa, jurídica e mesmo, ou talvez precipuamente, indagações de natureza ética merecem ser confrontadas a partir da leitura do projeto.
Vivemos uma pandemia – acontecimento que ninguém da nossa geração e de gerações que nos antecederam experimentou – que elevou a níveis severos a crise econômica que se arrasta desde 2008. Níveis que, segundo analistas, podem ser piores que os desencadeados pela crise de 1929.
O remédio econômico para situações como a que experimentamos, ao contrário da vacina para a Covid-19, não só existe como passou por todas as fases de teste, mostrando ampla eficácia. Os resultados foram tão surpreendentes que seu nome está em todos os livros de história, sendo conhecido por qualquer estudante do ensino médio. O remédio atende pelo nome de New Deal.
Adotado pelo presidente norte americano Franklin Delano Roosevelt a partir da década de 1930, o programa deu origem à figura das decantadas políticas públicas e consistiu numa série de medidas de estímulo estatal à economia. Medidas econômicas geradoras de emprego e renda, de incentivo direto à agricultura, indústria, construção civil e até à organização sindical. O remédio milagroso foi mais investimento estatal para garantia do bem-estar das pessoas; ampliação do Estado, e não seu enxugamento.
Daí que, no meio de uma crise tão ou mais séria que o crash de 1929, apresentar uma proposta legislativa de redução da máquina pública como caminho para a solução dos problemas econômicos e sociais equivale a oferecer cloroquina, ozônio retal ou fetiche que o valha para curar a Covid.
Reduzir o Estado neste momento é apostar no candidato derrotado, é eleger Hoover quando se sabe que o vencedor foi Roosevelt. Tão vencedor, aliás, que tiveram que mudar a Constituição estadunidense e aprovar a 22ª. emenda para impedir ele que fosse reeleito pela quarta vez, tamanho o sucesso do seu New Deal.
Se, economicamente, a proposição adota o amargo e ineficiente remédio ortodoxo do corte de despesas para fazer frente à crise fiscal, ela tampouco mostra coerência no âmbito administrativo. Isso porque toda organização do serviço público brasileiro desde os anos 1970, época da edição do decreto-lei 200/74, segue uma tendência de descentralização das atividades estatais. O PL 529/2020, por sua vez, executa movimento diametralmente inverso.
O primeiro grande movimento de organização do serviço público no Brasil ocorreu no governo Vargas, conduzido pelas mãos do Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP). A marca dessa fase de organização dos serviços públicos é a centralização, desempenhadas as atividades a cargo do Estado precipuamente pelas mãos da Administração Direta.
A descentralização do agir estatal é a marca definidora da administração pública a partir do decreto-lei 200/74, adotada para dar mais amplitude e agilidade à máquina pública. Tal descentralização constitui tendência que inclusive se aprofundou nas últimas décadas com a criação e implantação das agências estatais voltadas à regulação de setores estratégicos como energia, telefonia, saneamento, saúde etc.
Daí que ao estabelecer o retorno à administração direta dos serviços de interesse público realizados pelas entidades da administração indireta, cuja extinção se propõe – e é isso que consta dos dispositivos do PL 529 -, o projeto modela um rearranjo desestruturante da organização administrativa do Estado gestada nos últimos 40 anos, com impacto inequivocamente sensível na capacidade de resposta estatal para as questões pertencentes aos setores afetados, ou, em outras palavras, para a eficiência na prestação dos serviços públicos correspondentes.
De forma paralela, se a iniciativa pode, no curto prazo, reduzir algumas despesas, no médio prazo tende a demandar ampliação do quadro efetivo de funcionários, pois o atendimento do serviço vai exigir a realização de concursos e a nomeação de novos servidores para a administração direta, dado que ela não tem pessoal suficiente e habilitado para executar esses serviços, que por décadas estiveram alocados no âmbito das atividades a cargo da administração indireta.
Ainda na esfera da orientação organizacional do Estado, o PL 529, ao prescrever alteração na política dos Fundos de Despesa e carrear para o Tesouro os recursos remanescentes ao final de cada exercício, fere de morte parte importante das necessidades de custeio e da capacidade de planejamento dos setores estruturados com base nesses fundos. Esta específica proposição atinge diretamente as universidades estaduais e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de S. Paulo (Fapesp), com forte impacto negativo para o ensino de instituições reconhecidamente de ponta do nosso país. Mas o estrago não para por aí.
No Estado de São Paulo todo o sistema de Justiça tem sua organização lastreada em Fundos de Despesa. Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Procuradoria Geral do Estado e inclusive o Tribunal de Contas do Estado dependem de seus Fundos de Despesa para custeio e planejamento, a exemplo das universidades. A proposição atingirá todo esse segmento, com graves reflexos para o serviço que, no caso, abarca as atividades de julgamento dos litígios, defesa da cidadania, defesa dos hipossuficientes, defesa do próprio Estado e controle de contas públicas. Não é pouca coisa. A iniciativa impacta profundamente a capacidade de atendimento das demandas a cargo de todos esses organismos, com reflexos diretos na qualidade da prestação jurisdicional e da democracia cuja cura lhes compete. Trata-se de medida que, se aprovada, trará ao cidadão de São Paulo séria deterioração nos mecanismos de acesso à Justiça e, ao próprio Estado, causará precarização ainda maior da sua própria capacidade de arrecadação e defesa.
Tudo isso indicia que, se levou em conta números, a proposta o fez de forma muito simplória, impensada, irresponsável, sem considerar a lógica do desenho estatal vigente e os graves impactos das proposições apresentadas. Não houve maiores preocupações com a preservação da quantidade e da qualidade da prestação estatal à cidadania e nem compromisso com a democracia.
Juridicamente, o PL 529/2020 reúne inconstitucionalidades e ilegalidades que, espera-se, sejam detectadas pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp).
A ofensa à autonomia universitária, constitucionalmente estabelecida, é um dos pontos gritantes do projeto. Retirando recursos das universidades e da Fapesp pela transferência anual dos valores remanescentes de seus fundos para o Tesouro, a proposta inviabiliza a organização e o planejamento autônomos dessas instituições e, com isso, agride a garantia constitucional inscrita no art. 207, da CF/88.
A desfiguração dos Fundos Especiais de Despesa, com alteração generalizada de suas destinações e subtração de seus recursos acumulados agride, a seu tempo, a Lei 4320/64 e tampouco pode prosperar.
Outro aspecto cuja legalidade se questiona é a securitização de recebíveis. O projeto de Doria busca revigorar essa figura economicamente desastrosa e juridicamente ilegal; um modo disfarçado de antecipação de receita, que significa, na prática, a venda ao sistema financeiro de tributos certos de recebimento futuros por preço de banana para levantamento imediato de dinheiro.
Francamente, há maneiras mais inteligentes de capitalização que podem ser buscadas pelo Estado. Na securitização, vende-se barato a receita futura do Estado e despende-se muito para cobrar para o especulador. Um negócio indigno de um gestor medíocre, quanto mais de médios ou bons.
E a propósito da indignidade, essa se mostra a face mais notável do projeto. Parece surreal que, no auge da pandemia – quando estamos num platô de casos e mortes, quando morrem centenas de pessoas no Estado diariamente e outras milhares são contagiadas pela Covid – o governador João Doria encaminhe para o parlamento paulista uma proposta que visa desempregar milhares de servidores a partir da extinção de autarquias, fundações e empresas públicas paulistas.
No mundo todo, o esforço de governantes é garantir os empregos, estender os braços do Estado para os mais necessitados. Não fosse uma obrigação pública, a garantia de empregos e de assistência aos vulneráveis neste momento seria um imperativo ético.
No Estado de São Paulo, entretanto, o gestor Doria propõe pôr na rua milhares de servidores – pior, milhares de servidores que atendem vulneráveis. Seu projeto quer extinguir aqueles que atendem quem precisa de remédio público (a Fundação Para o Remédio Popular), de saúde pública (o Oncocentro), de moradia patrocinada pelo Poder Público (a Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), de terra para a produção agrícola (a Fundação Instituto de Terras do Estado de São Paulo, especializado na regularização fundiária rural e urbana do Estado, atendendo ainda comunidades quilombolas). Quer extinguir ainda quem cuida da saúde coletiva (a Superintendência de Controle de Endemias), quem cuida do meio ambiente e dos animais (o Instituto Florestal e a Fundação Zoológico). Ou seja, o desvalor pela dignidade humana é a marca indelével do projeto.
No trecho que justifica a proposta de demissão “incentivada”, a exposição de motivos do governador alcança as raias da crueldade ao descrever os servidores celetistas estáveis como profissionais que desempenham suas atividades “sem interesse, desestimulando os demais servidores”, “que não requerem desligamento em razão de receio de demora em eventual reinserção no mercado de trabalho”.
Com o encaminhamento deste projeto, nestes termos, o governador de São Paulo inscreve seu nome no rol dos governantes insensíveis, insensatos, irresponsáveis.
Se esse tipo de gestor depredador funciona para a iniciativa privada, para o Estado ele não presta. Estado precisa de político, coisa muito mais complexa. Precisa de gestor de gente e não apenas de números.
Márcia Maria Barreta Fernandes Semer é procuradora do Estado de São Paulo, mestre e doutora em Direito do Estado pela USP. É atual Presidente do SindiproesP (Sindicato dos Procuradores do Estado, das Autarquias, das Fundações e das Universidades Públicas do Estado de São Paulo).
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