Divulgação realizada por solicitação da professora Edwiges Maria Morato (IEL) , na condição de sindicalizada. As opiniões expressas nos textos assinados são de total responsabilidade do(a)s autore(a)s e não refletem necessariamente a posição oficial da entidade, nem de qualquer de suas instâncias (Assembleia Geral, Conselho de Representantes e Diretoria).
Por Wilmar R. D’Angelis e Juracilda Veiga*
Na primeira metade do século XX cerca de 80 povos indígenas “desapareceram” no território brasileiro, segundo o antropólogo Darcy Ribeiro, no seu fenomenal Os índios e a civilização. No momento em que o livro era publicado (1970), sob uma ditadura militar insana, avançava-se sobre a Amazônia com um programa megalômano de estradas, que inaugurava um novo processo jamais contabilizado de extermínio de povos indígenas. Nenhum daqueles generais de plantão e nenhum sócio das empreiteiras que se locupletaram com a Transamazônica e suas perimetrais jamais foram acusados pelos crimes de lesa-humanidade que foram perpetrados então. Saímos de um ominoso regime militar sem julgar ninguém, ou seja, sem fazer a lição de casa que outros países, com decência, tiveram a coragem de fazer: nossos criminosos ditadores têm seus nomes em praças e avenidas, mas sequer registramos os nomes dos povos indígenas exterminados pela Amazônia afora naqueles tristes anos.
Tudo isso nos parecia passado, um passado de vergonha nacional, mas uma espécie de página virada, como a própria escravidão indígena, que perdurou por quase 400 anos em nosso país, mas da qual quase nada se diz ou, quando se diz, se minimiza com afirmações infundadas, que às vezes parecem até soar como lamento de escravocratas: “os índios não serviram para o trabalho escravo”.
Porém, aos poucos o país descobre que a ganância capitalista e a subserviência de um governo aos interesses estrangeiros são capazes de reviver até os discursos racistas mais odiosos – como o recente caso de um secretário nazista – e, pior que isso, de implementar políticas claramente dirigidas à destruição de culturas multi-milenares, de sociedades indígenas cujos direitos são anteriores à existência do Estado brasileiro.
Em um único dia, 5 de fevereiro, o governo Bolsonaro liberou, por decreto, o garimpo e a mineração em terras indígenas, e nomeou um missionário proselitista evangélico para uma das áreas mais sensíveis de atuação da FUNAI: a coordenação de índios isolados e recém contatados.
De um presidente da República capaz de afirmar que “cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós” (jan.2020), tudo se pode esperar. Ainda mais porque é o mesmo político que disse, há 20 anos: “Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios” (abr.1998).
Diferente do que muita gente pensa, sobretudo os desinformados do whatsapp, e diferente do que dizem os políticos apoiadores dessa medida do governo (mas esses, nada ingênuos nem inocentes), ao liberar a mineração em terras indígenas não se está beneficiando em nada a população brasileira, antes o contrário. Todas as pessoas de mais de 50 anos certamente se lembram que os militares, na ditadura, diziam que o ouro de Serra Pelada (no Pará) iria pagar a dívida externa brasileira. Não só não pagou, como a dívida externa, na mesma época, aumentou pelo financiamento internacional do Projeto Grande Carajás (Estrada de Ferro Carajás e o porto de São Luís), cujo passivo ambiental também não é nada desprezível.
A mineração em terras indígenas tem dois modelos: o do garimpo propriamente dito, e o da mineração. Bolsonaro mencionou várias vezes, desde a campanha eleitoral, que desejava abrir as terras indígenas “ao garimpo” e, assim, “criar pequenas Serras Peladas”.
O garimpo desenfreado (e todo garimpo é) leva centenas e, às vezes, milhares de pessoas a uma região, criando povoados marcados por condições de extrema insalubridade e violência, e pela exploração sexual de mulheres, que, no caso da proximidade com terras indígenas, atinge as próprias pessoas de suas comunidades. Sobre esse modelo, a própria ABPM (Associação das Empresas de Pesquisa Mineral) afirmou, em uma nota oficial (22.julho.2019): “Todos do setor mineral sabem que o garimpo deixou de ser uma ‘resultante’ social para ser a fonte de trabalho escravo, degradação ambiental, trabalho infantil, bolsões de pobreza, e, infelizmente, são inúmeros os casos de relações incestuosas de ‘donos de garimpo’ com políticos e até com tráfico de drogas”. Na mesma nota, descrevem outros aspectos relevantes do garimpo (esse que Bolsonaro deseja permitir em terra indígena): “O garimpeiro com a bateia nas mãos buscando ouro e diamante no curso das águas de um rio foi substituído por trabalhadores equipados com super-escavadeiras, motobombas e balsas gigantescas comandadas pelos ‘donos dos barrancos’, pessoas que controlam os garimpos, usando mercúrio, cianeto, explosivos sem critério e cuidado, envenenando pessoas, rios e solo pelo lucro fácil”.
A ABPM está correta, ainda que sua preocupação, no caso, fosse menos social do que com a concorrência ao seu negócio, igualmente de lucro fácil: o da grande mineração. Nesse segundo modelo, empresas detentoras de direito e autorização de lavra (expedida pelo DNPM), com as devidas (e curiosas) “licenças ambientais”, montam grandes estruturas, porque seus investimentos se dirigem apenas a locais em que a jazida mineral a ser explorada garante um negócio de décadas (um exemplo: a mina de Serra do Navio, no Amapá, explorada por um consórcio de empresa brasileira com a Bethlehem Steel retirou de lá, em 40 anos, mais de 33 milhões de toneladas de manganês). No Brasil, são mais de 50 os minerais metálicos explorados nesse tipo de negócio, e são mais de 150 as minas de grande porte.
É verdade que a atividade de mineração (uma atividade predatória por excelência) é uma grande geradora de riqueza, mas no regime que vivemos, esta é uma riqueza que se concentra nas mãos de poucos, e pouco tem a ver com a melhoria de vida da população. A Associação das mineradoras acusa o garimpo, onde “a atividade ilegal cresce e promove fortunas de meia dúzia de barões”, e em sua defesa, destaca que a mineração legal recolhe impostos, mas não é menos verdade que as grandes minerações promovem fortunas de uma dúzia de barões, deixando o passivo ambiental para o conjunto da sociedade e para as gerações futuras. Os recentes crimes de rompimento de barragens de rejeitos de minério da Vale, em Mariana (nov.2015) e Brumadinho (jan.2019), revelam a fragilidade das medidas “protetivas”, bem como o descaso das mineradoras com o país, seu patrimônio natural e sua gente.
O que há de comum entre o garimpo e a mineração empresarial é, exatamente, o desastre ambiental que produzem, além dos impactos sócio-econômico-culturais na população envolvente, não necessariamente positivos. A mina da Serra do Navio (AP), mencionada acima, para chegar aos 33 milhões de toneladas de manganês, movimentou mais de 120 milhões de toneladas de “material estéril” (no linguajar do setor), gerando mais de 26 milhões de toneladas de rejeitos, deixando crateras na floresta que, somadas, equivalem à extensão do Lago Paranoá, em Brasília. As crateras só têm vocação para reservatório de águas pluviais, e os rejeitos … bom, sabemos o que acontece com os rejeitos de mineração, mais dia ou menos dia.
O garimpo e a mineração em terras indígenas, além do impacto social destrutivo sobre as comunidades, seus modos e conhecimentos tradicionais, e seus valores, ainda causam uma perda incomensurável ao país, ao destruir importantes áreas de preservação ambiental: uma passada de olhos nas imagens de satélite do território brasileiro revela que a parte mais significativa de áreas ambientalmente preservadas corresponde às terras indígenas (e não às terras do agronegócio, como alardeia uma grande rede de televisão).
A segunda agressão do governo Bolsonaro, no mesmo dia, à sobrevivência das sociedades indígenas e suas culturas, foi a nomeação do Pastor Ricardo Lopes Dias para comandar o setor de índios isolados e recém contatados, da FUNAI. O pastor é ligado ao empreendimento norte-americano New Tribes Mission (aqui traduzido por MNTB – Missão Novas Tribos do Brasil). A nomeação do pastor pelo Ministério da Justiça (sob comando do ex-juiz Sérgio Moro) foi antecedida de uma manobra de alteração do regimento interno da FUNAI, que até então restringia a função a pessoas do quadro de carreira do órgão (indigenistas concursados).
A MNTB e diversas outras missões e associações proselitistas, como a MEVA, JOCUM, Atini, ALEM (muitas delas sustentadas dos Estados Unidos, por suas matrizes ou por apoiadores como a Baptists for World Evangelism) são responsáveis por incontáveis ações de desrespeito e de invasão cultural em sociedades indígenas, na premissa – inaceitável nos dias atuais – de que são detentores “da verdade”, o que lhes daria o direito de atacar as culturas que não se coadunam com sua compreensão do mundo (e, frequentemente, seu entendimento raso e enviesado de textos bíblicos).
A essa mentalidade estão dando guarida, na FUNAI, o Presidente Bolsonaro e seu Ministro da Justiça. A nomeação de um missionário evangélico para uma área tão delicada de atuação do órgão indigenista veio coroar um quadro de agressões iniciado com a nomeação, por Sérgio Moro, de Marcelo Xavier da Silva, ligado à bancada ruralista, para a Presidência da FUNAI, em julho de 2019.
O capitão Bolsonaro já disse que não entra no que ele entende ser uma “balela de defender terra pra índio”. Pode-se entender isso, mas não se pode aceitar que a autoridade máxima da nação se torne o grande responsável pela retomada da escalada etnocida contra os povos indígenas em nosso país.
A história cobrará, pois, da nossa geração, o absurdo de escancarar as portas das terras indígenas para o etnocídio. Não esqueçamos, por isso, de registrar os nomes dos criminosos que, inspirados no nazismo, defendem que os povos indígenas precisam ser transformados em “seres humanos igual a nós”.
*Juracilda Veiga, indigenista, Doutora em Antropologia, funcionária aposentada da FUNAI, Coordenadora da ONG Kamuri. Wilmar R. D’Angelis, indigenista, Doutor em Linguística, professor da área de Línguas Indígenas da UNICAMP. Juracilda e Wilmar são casados, tendo trabalhado como indigenistas a partir da segunda metade da década de 1970 no Sul do Brasil, especialmente junto ao povo Kaingang. Nas últimas quatro décadas, ambos têm se dedicado à luta pela demarcação de terras indígenas, ao aprofundamento da pesquisa em linguística, antropologia e educação indígena e, principalmente, se empenhado em difundir o respeito à cultura, língua, tradições e religiões indígenas junto à sociedade brasileira.
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