Negação da ciência e ações de Bolsonaro são responsáveis pelo descontrole da pandemia no Brasil


A negação de medidas científicas para o combate à Covid-19, propagada por altas autoridades da República, incluindo o próprio presidente Jair Bolsonaro, é uma das principais responsáveis pela perda de controle da pandemia, que já causou mais de 500 mil mortes no Brasil. Esses ataques à ciência, claramente caracterizados de forma ideológica e política, são alimentados diariamente por uma enxurrada de fake news disseminadas pelas redes sociais e que confundem grande parte da população com menos acesso à informação.

Além disso, o conflito entre economia e medidas restritivas, colocado no Brasil pelo governo e por esses grupos, mostrou ser um equívoco, uma vez que a experiência de muitos países que seguiram as medidas mostra a retomada ampla da atividade econômica, e com controle da pandemia, em tempo muito mais curto.

Essas são algumas conclusões apresentadas pela professora Raquel Stucchi (FCM), especialista em infectologia, e pelo cientista político e professor Wagner Romão (IFCH), durante a live “O combate à Covid-19: da medicina à política”, realizada pela ADunicamp nesta quarta-feira, 23 de junho. O encontro foi mediado pelo professor Gustavo Tenório Cunha (FCM), 2° vice-presidente da ADunicamp, e o vídeo está disponibilizado na íntegra no canal da entidade no Youtube (e no player ao lado).

A professora Raquel mostrou, com gráficos e números, que a pandemia no Brasil caminha na direção contrária do resto do mundo. “O mundo apresenta uma curva em queda e a nossa, na contramão, chega a essa marca trágica de mais de 500 mil mortes. E estamos crescendo. A pandemia está totalmente fora de controle no país”, relatou.

Os gráficos apresentados por ela mostram que o Brasil vive, desde o início da pandemia, uma curva em permanente crescimento, com curtos momentos de queda, mas nunca abaixo dos números iniciais.

“Tenho dificuldade de falar em primeira, segunda e terceira ondas. Muita gente interpreta como se estivéssemos iniciando uma nova onda, mas os gráficos mostram que estamos sempre crescendo”, avaliou. Há exatamente um ano, o Brasil registrava 50 mil mortes, um número já preocupante na época. “E estaria ao nosso alcance controlar para não chegarmos a essas mais de 500 mil atuais”.

DOIS PILARES

O coronavírus é estudado a fundo pela ciência nas últimas décadas, após o surgimento de pandemias mundiais como a do H1N1, gripe suína e gripe aviária. E, com base nesses conhecimentos, a professora Raquel aponta que há dois pilares já amplamente investigados para garantir o controle da pandemia, além da vacina.

O primeiro é a testagem em massa, que o Brasil ignorou. Hoje, o país é o oitavo da América Latina em testagem. O Chile, que está entre os países que mais controlam a pandemia no continente, testa quatro vezes mais que o Brasil. “Testar é importante porque na hora que faço o diagnóstico, com ou sem sintomas, eu consigo isolar os contatos. E os países que mais testaram e fizeram o rastreamento de contatos foram os que mais controlaram o crescimento da pandemia”, apontou.

Países exemplares no controle, como Israel, continuam fazendo testagem rigorosa, mesmo depois da vacinação em massa. Recentemente, a testagem em todos os passageiros, na chegada de um avião vindo de outro país, detectou o coronavírus em três deles. “Imediatamente todos foram isolados, impedindo a disseminação”.

Uma das dificuldades apontadas para a testagem em massa no país é o alto custo dos testes mais rigorosos como o RT-PCR. Mas, segundo a professora, testes baratos como os de antígenos cumprem perfeitamente o papel de diagnóstico para fins de controle. “Perde um pouco da exatidão em casos assintomáticos, mas é barato e o resultado sai em minutos”.

O outro pilar básico para o controle da disseminação é a barreira. E a primeira barreira, lembrou a professora, é a máscara. Estudos realizados no mundo inteiro comprovam que a principal forma de transmissão do coronavírus é de pessoa para pessoa, por meio das gotículas de saliva.

“Hoje conhecemos bem o comportamento dessas partículas. Temos as mais pesadas e os aerossóis que fazem nuvenzinhas. O contágio por aerossol é particularmente importante em ambientes fechados, onde o risco é quase 20 vezes superior do que em ambientes abertos. Daí a importância total da ventilação e das máscaras”, afirmou. E esse cuidado tem que ser amplamente respeitado em ambientes de trabalho, no transporte e assim por diante. “É a máscara e a higienização das mãos que cortam a transmissão de pessoa para pessoa. O uso de máscaras, especialmente a PFF2, mais indicada para ambientes fechados, ajuda a conter em até 80% a transmissão”.

Esses dois pilares, segundo a professora, são essenciais no momento, mas o controle real da pandemia só começará a ocorrer após a vacinação em massa. E, mesmo após a vacina, cuidados ainda terão que ser adotados, dependendo dos desdobramentos da pandemia e de novas variantes do coronavírus.

“Não temos nenhuma proposta de exterminar o vírus no momento, mas sim reduzir mortes, casos graves e internações. Países que iniciaram a vacinação mais cedo, mesmo sem ter vacinado toda a população, tiveram queda muito expressiva de mortes e internações. E a vacinação protege toda a população, não só as pessoas vacinadas. Temos que vacinar em massa”. Países que conseguiram vacinar duas doses em mais de 50% da população já estão retomando a vida econômica e social, inclusive em alguns lugares já sem uso de máscara.

O Brasil têm um problema adicional no enfrentamento da Covid-19, que é a profunda desigualdade social, acentuada pela pandemia. A desigualdade, segundo a professora, é revelada também na vacinação em curso.

“Pagamos um preço alto por não vacinar trabalhadores. Todos aqueles que garantiram nossa sobrevivência nestes tempos morreram muito mais, aumentando a desigualdade. Não foram priorizados, como deveriam, na vacinação”.

QUESTÃO POLÍTICA

Para o professor Wagner Romão, a questão política é central para se analisar o descontrole da pandemia no Brasil hoje e avaliar as perspectivas futuras de controle. “Boa parte do desastre, das 500 mil vidas perdidas, se deve diretamente a quem está no comando da política, hoje o presidente Jair Bolsonaro. Tivemos a má sorte de ter um presidente negacionista e autocentrado, que acreditava, desde o início, que ele pessoalmente se livrando da Covid-19 traria felicidade para o povo brasileiro”.

E a orientação, repetida pelos especialistas, de que as vacinas por si só não darão conta do combate à pandemia; e que máscaras, distanciamento e medidas de contenção terão que ser mantidas por um bom tempo, complicam ainda mais o quadro. “Continuamos numa situação muito difícil, porque o presidente da República é contrário e critica o uso de máscaras e o isolamento. Importante sabermos isso em qualquer avaliação sobre como a política pode ajudar a ciência e a saúde no enfrentamento à Covid-19”.

No Brasil, os governantes sempre seguiram as orientações da ciência e de profissionais da saúde no enfrentamento de problemas sanitários e epidemias. “Depois, com as crises debeladas, até se aproveitavam politicamente pra colher os louros”. Mas, neste momento, a pandemia foi politizada ao extremo, como se quem usasse máscara fosse de uma corrente política e quem não usasse fosse da outra.

Assim, na avaliação do professor, só uma mudança no atual quadro político pode alterar o comportamento de parte importante da população e mudar a condução da política sanitária nacional. “Por isso, é importante que façamos uma análise de conjuntura para ver se há alguma possibilidade de que isso ocorra”, argumentou. Ele relatou que havia preparado alguns pontos sobre a atual conjuntura política no país, para apresentar no encontro. “Mas hoje, exatamente no dia desta nossa live, tivemos quatro notícias muito significativas. E que apontam para prováveis mudanças de conjuntura”.

A primeira delas, foi o julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) que acatou a tese de suspeição do ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro, depois de sucessivos adiamentos. “Isso é importante por dois motivos principais. Reflete o decaimento da figura Moro e de tudo que se articulou em torno da lava-jato e que proporcionou uma situação singular no país, quando o candidato que estava à frente das pesquisas não pode participar das eleições. E também deixa claro que poderá ocorrer eleições com Bolsonaro e Lula”, avaliou. Para ele, esse é mais um capítulo importante que dissocia a figura de Moro de Bolsonaro, associação que foi fundamental nas eleições de 2018.

A segunda notícia, apontada por Wagner Romão, foi a queda do ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles. Na avaliação dele, num momento em que ainda não se tinha o nome do novo ministro, a queda teve um significado importante, mesmo que o que viesse depois fosse “mais do mesmo, ou seja, uma pessoa à imagem e semelhança do Salles”. Para o professor, o fato de Salles ter caído por uma investigação da Polícia Federal por contrabando de madeira, mostra que o atual governo não tem o controle total da polícia, como Bolsonaro reafirma a todo momento.

A terceira notícia foi a explosão da denúncia de superfaturamento na compra da vacina indiana Covaxin, com indícios de envolvimento direto do próprio presidente. “Essa investigação abre brechas nas negociações dentro do governo, nas negociações com o centrão. É algo que está pegando forte e temos que esperar, pois é muito difícil que uma negociação deste quilate, com valores bilionários, não seja investigada. E pode levar a um desgaste ainda mais forte da figura de Bolsonaro”.

A quarta notícia apontada pelo professor foi a violência contra os indígenas e o fechamento do Congresso para impedir o acesso. Os indígenas protestavam contra o Projeto de Lei 490, em votação na Câmara Federal, que praticamente impossibilita novas demarcações de terras e abre caminho para o extrativismo mineral e madeireiro nas atuais reservas indígenas. O projeto foi acatado pela CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) da Câmara, por 40 votos favoráveis e 21 contrários. “Mostra que Bolsonaro ainda é forte na Câmara, mas as ações revelam que há uma situação de conflagração muito intensa neste momento no país”, reforçada pela retomada das manifestações de rua por opositores ao presidente.

O professor disse não acreditar que Bolsonaro, mesmo sob pressão, mude seu comportamento sobre uso de máscaras e distanciamento social. “Ele trabalha com a hipótese de que os 20 ou 25 por cento de seguidores radicais o levem para o segundo turno”, mas os fatos acima podem ter “importantes desdobramentos na conjuntura política atual”.


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