O PROJETO NEOLIBERAL E OS ATAQUES À UNIVERSIDADE PÚBLICA, À CIÊNCIA E À EDUCAÇÃO: TEMA DO BOLETIM DA ADUNICAMP
Por Edwiges Morato – Professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp) e Diretora da ADunicamp
Não é de hoje que o Brasil tem sido visto como um “campo de provas” de um projeto neoliberal conservador, autoritário e antinacional. O Golpe de 2016 e a reforma trabalhista (que fragiliza direitos trabalhistas, salários, condições laborais), bem como a Emenda Constitucional 95 (que congelou gastos do Estado em áreas essenciais como Saúde e Educação), eventos ocorridos ainda no Governo Temer, não desmentem essa tese. Muito pelo contrário.
Os estudiosos de áreas como Economia, História, Ciência Política e Sociologia apontam que o projeto macroeconômico de viés desestatizante há décadas suplicia nações inteiras, mesmo aquelas que já conheceram de algum modo um estado de bem-estar social, como o Chile antes do General Pinochet.
Segundo Óscar Landerretche, da Universidade do Chile, após o golpe naquele país, “não havia seguro de saúde universal, seguro-desemprego, gratuidade no ensino superior, nem pilares solidários no sistema de previdência” . A história se repete no Brasil em proporções gigantescas, como o nosso país. Projetos que se organizam como laboratórios em construção em várias áreas tidas como essenciais e estratégicas, engendradas como ações de Governo, estão centrados nos pilares do neoliberalismo: austeridade radical, desregulação do mercado de trabalho, privatização generalizada. Tais pilares têm muitas faces (política, econômica, educacional, previdenciária, cultural, industrial, filosófica, etc.) que podem ser exibidas conjuntamente, de forma a diminuir a presença do Estado e permitir redução de gastos e investimentos públicos, especialmente na área social.
Não apenas a Educação e a Ciência sofrem com os ataques desferidos contra os interesses da população; também outras áreas essenciais como a Saúde, a Cultura e o Meio Ambiente resistem a cortes, boicotes, especulação, negligência e desamparo.
João Arriscado Nunes, professor de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal), publicou durante a última eleição presidencial brasileira (2018) um artigo no jornal O Público intitulado “A contrarreforma sanitária, ou o neoliberalismo como patologia” . Nele, Nunes afirma que a Constituição Federal de 1988 “determinou que a saúde era um direito de todos e um dever do Estado. Um dos aspectos em jogo hoje, na eleição em curso no Brasil, é a resistência às tentativas de desmantelar os meios para a realização desse direito e desse dever”. O desmantelamento do SUS, ousada iniciativa de garantir direito à Saúde num país de proporções continentais e marcado por uma enorme concentração de riqueza, tem tornado o Brasil um dos laboratórios neoliberais de enorme impacto social no âmbito da Saúde.
Vladimir Safatle, professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), em artigo publicado em setembro de 2019 no jornal francês Le Monde, afirma que “uma das consequências mais visíveis desse neoliberalismo autoritário é a submissão de qualquer política ambiental aos interesses imediatos da indústria agroalimentar, um dos setores chave de apoio a Jair Bolsonaro. Nenhum protesto da sociedade tem verdadeiramente peso contra essa lógica baseada no desrespeito colonial secular pelos povos indígenas, no nacionalismo paranoico e na reedição de processos antigos de conquista de terras”.
Contudo, é principalmente no campo do conhecimento que os governos neoliberais engendram suas investidas mais atrozes.
Este número especial do BOLETIM DA ADUNICAMP trata dos ataques neoliberais envidados contra as universidades públicas, portanto à Ciência, à Saúde e à Educação, pilares de qualquer possibilidade de inserção do Brasil na chamada sociedade do conhecimento, da tecnologia, do bem-estar e da informação, em suas muitas formas.
Verdadeiros laboratórios de um projeto neoliberal, tais agressões contra o interesse da população brasileira têm promovido, ou tentado promover, uma destruição devastadora de conquistas no campo das políticas públicas. O Governo Temer já havia anunciado o desmonte em curso, com a aprovação da reforma trabalhista e a Emenda Constitucional 95.
O Governo Bolsonaro, por sua vez, lançou-se desde o início com fúria sobre os interesses nacionais, o sistema previdenciário, a infraestrutura da indústria, as condições ecológicas e ambientais, os direitos humanos, as conquistas socioculturais obtidas em passado recente nas áreas de Educação e Ciência, sabidamente emancipadoras, reflexivas e formativas.
A precarização do trabalho docente, do pesquisador e do cientista, agudizada pela Reforma da Previdência já aprovada no Senado, é um derivado do projeto neoliberal ancorado na fragilização dos direitos trabalhistas, na “uberização” do trabalho. “Propostas” ineptas, obscurantistas e autoritárias para a Educação e a Cultura abundam nos últimos meses, seja por meio de incentivo à censura e ao denuncismo no ambiente escolar e científico, seja por meio de intervenção direta do governo nas esferas administrativas de instituições de ensino e ciência, seja por meio de cortes de bolsa e de apoio à pesquisa, seja por meio de projetos conservadores quase sempre rejeitados pela comunidade acadêmica e pela sociedade civil (escolas militares, homeschooling, projeto escola sem partido), seja pela mercantilização da Educação Superior (via projetos como o FUTURE-SE), seja por meio de estratégias de força como a instalação de uma CPI sem objeto definido a afrontar as universidades públicas paulistas.
Este Boletim, além de avaliar os impactos e as implicações do neoliberalismo no campo da Educação e da Ciência, tem o objetivo de identificar seus objetivos e modus operandi. Afinal, a melhor maneira de frear e superar o desenvolvimento do projeto neoliberal entre nós, segundo vários estudiosos, é a um só tempo fortalecer valores sociopolíticos humanísticos, essencialmente não capitalistas, e identificar valores e atores que operam no polo contrário a eles.
A história do neoliberalismo na América Latina aponta semelhanças e diferenças entre as experiências de diferentes países da região. A experiência brasileira tem transformado o Brasil num “país-laboratório”, como recentes fatos políticos têm indicado. Assim como a história neoliberal latino-americana, a brasileira é caracterizada por uma “grande violência sociopolítica institucionalizada”, nos termos de Gaudichaud, em um texto intitulado “La voie chilienne au néolibéralisme. Regards croisés sur un pays laboratoire” , publicado em 2014.
Conter os efeitos de projetos ou laboratórios neoliberais implica, naturalmente, opor-se ao neoliberalismo como forma de vida. Disso dependerá toda sorte de organização e ação da sociedade civil, dos movimentos sociais, do parlamento, das entidades sindicais, dos estudantes, etc.
A preservação de um sistema educacional público, gratuito, laico, de qualidade e socialmente referenciado é, ao que tudo indica, base da resistência aos ataques aqui mencionados.
Com a finalidade de analisar vários aspectos e implicações do neoliberalismo, colaboram com este novo número do BOLETIM DA ADUNICAMP docentes de várias áreas. Reunidas em textos breves, as reflexões enfeixadas neste Boletim estão devotadas, de maneira objetiva e contundente, à análise da conjuntura nacional, em especial a que se refere ao contexto científico e educacional.
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