Réquiem por um maestro aguerrido


Por Batata (Ronaldo Simões Gomes).

Cheguei a Campinas para estudar Engenharia, em 1971, quando o Instituto de Artes da Unicamp ensaiava sua presença na seara universitária, trazendo o Professor Hans Joaquin Kollreutter para deflagrar um processo de instalação de um Departamento de Música da Unicamp. Foram oferecidos, então alguns cursos de extensão universitária, ministrados pelo Prof. Kollreutter, e programada uma apresentação do CoralUsp, regido pelo Maestro Benito Juarez, na Catedral de Campinas, onde se anunciou a contratação do Maestro pela Unicamp e a proposição de criação de um Coral da Universidade, como primeira atividade de implementação de um trabalho de musicalização que servisse de base para a futura implementação de um Curso de Música.

Participei do processo de criação do Coral Unicamp, como um barítono desafinado que desenvolveu um aprendizado de canto e de percepção musical, a ponto de, passados dois anos, ser indicado pelo maestro Benito Juarez para assumir a regência de um Coral em São Miguel Paulista, vinculado ao Movimento Mário de Andrade, da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo.
Vivíamos, então, o período mais truculento da Ditadura Militar, com censura às artes e às manifestações culturais e políticas em geral e o trabalho de Benito Juarez se apresentava como um exercício de insurgência contra padrões estabelecidos tanto na perspectiva musical, pela incorporação da música popular e da música contemporânea em seus repertórios, como pela concepção de que a prática musical prescindia da pompa da sala de concerto: a prática musical poderia ser implementada nos espaços cotidianos e de maneira inesperada. A máxima, que teria anos mais tarde, sua enunciação poética pela voz de Mílton Nascimento – “todo artista tem que ir aonde o povo está” – foi a prática cultural de Benito Juarez.
Os bloqueios eram muitos. Mas, a estratégia de Benito passava por uma busca de reconhecimento do Coral então criado, pela própria comunidade universitária, interagindo no seu cotidiano. Fazíamos ensaios extras pelo campus, no horário do almoço, com os participantes que pudessem comparecer, e cantávamos duas ou três músicas nos espaços de maior circulação de gente pelo campus. Isso nos manteve como um grupo de grandes dimensões, contando com entre 80 e 100 cantores no período de 1971 a 1975.
Essa prática se implementava também pela cidade. Anualmente fazíamos uma apresentação oficial do Coral com um repertório novo, que se tornaram grandes eventos, numa cidade que na época sequer tinha teatros. Depois de uma primeira apresentação na Catedral de Campinas no final de 71, com a casa lotada, realizamos as seguintes no Ginásio do Tênis Clube de Campinas, com milhares de pessoas na plateia. e passamos a intervir no espaço cultural da cidade, cantando em eventos e cantando pelas ruas. No período natalino, passeatas corais, com um mote de músicas natalinas e um tempero da diversidade cultural que o Coral cultivava, dos madrigais renascentistas aos pontos de candomblé arranjados por Villa-Lobos, e às coletâneas carnavalescas arranjadas por Damiano Cozzela.
Em dezembro de 1972, ao final de uma passeata coral, batemos às 21 horas na porta da Cadeia de Campinas, na Avenida Andrade Neves, anunciando querer cantar para os presos. Pânico na burocracia prisional! O inesperado fazendo-se surpresa! Consultas aos superiores e faxina no prédio. Esperamos cerca de uma hora para entrar por corredores rescendendo a creolina; distintas senhoras da sociedade campineira se deparando com o horror do espaço prisional, adentrando a um pátio interno onde farfalhavam baratas pelo chão; e nas janelas gradeadas, penduravam-se pernas e roupas e braços a manifestar sua surpresa e curiosidade. Antes de se apresentar qualquer música, ressoou uma frase pelo pátio: – “Aí, hein! Vieram trazer Jesus pra gente?!” . Risos na geral e pânico entre os cantores; cumprimos com algumas músicas natalinas como justificativa da presença e enquadramento à perspectiva acenada pela frase vinda das grades, e na sequência, um repertório diversificado, com o Aleluia do Handel – impactante – e no desfecho, “Disparada” de Geraldo Vandré, trazendo no desfecho a resposta à interrogação da abertura: “não canto para enganar …”. Foi o suficiente para o cadeião vir abaixo em euforia. Saímos em estado de graça, emocionados como em poucas outras apresentações monumentais que realizamos. Ali se configurou para os cantores a contundência do fazer da arte um domínio público.

Benito Juarez foi um interlocutor e um cúmplice das produções culturais universitárias quando organizávamos atividades pelo campus e pela cidade; as Feiras de Arte, nossa construção modernista de manifestação da cultura universitária, onde o Coral Unicamp era uma presença constante, e os espetáculos musicais que organizávamos com os grupos que foram se articulando em nossas cercanias, com os quais circulamos pelas universidades do Estado. Criar espaços de expressão cultural era também uma política de resistência
Como educador, Benito tinha a referência da Escola Livre de Música da Bahia, onde estudou sob a batuta de Kollreutter, e onde o aprendizado se desenvolvia em ambientes informais e baseado na prática musical. Estruturou nas instalações do CoralUsp uma grande escola livre, onde os cantores interessados iam se iniciar ou aprofundar conhecimentos junto a uma equipe qualificada que tinha como partícipes o maestro Damiano Cozzela, a cantora Ana Maria Kieffer, o cantor Antônio Baldur, e a musicista Elizabeth Pinheiro, sua então esposa, além dele mesmo disseminando as práticas de regência. Nos períodos de férias escolares, ele desenvolvia cursos de regência para os participantes de seus corais, aglomerando 30, 40 pessoas no auditório da Faculdade de Enfermagem da USP, trabalhando desde o preparo físico necessário à atividade, até estratégias de ensaio e análise de partituras. Paralelo a essas maratonas de formação, saia em busca de abrir espaços institucionais que abrigassem a prática de seus discípulos.
‘Missa da Coroação’ de Mozart, ‘Carmina Burana’ de Carl Orff, ‘Missa Criolla’ de Ariel Ramirez e Felix Luna (com esta montagem ganhamos o prêmio da APCA de melhor coral do Estado de São Paulo), ‘Colombo’ de Carlos Gomes, ‘Missa da Nova e Eterna Aliança’ de Raul do Valle, ‘10 Canções de Amor’ de Schumann, foram as grandes intervenções de Benito no cenário cultural de Campinas, iniciando o trabalho que viria a dar continuidade como reestruturador e regente da Orquestra Sinfônica de Campinas, tornando a música coral e sinfônica em um espetáculo de massas.
Como dirigente de um grupo institucional, foi obrigado por duas vezes, a prestar serviços às manifestações da Ditadura. Em 31/Março/1973, uma apresentação numa cerimônia comemorativa da Ditadura causou um cisma no Coral, e um grupo desfalcado compareceu às escadarias da Prefeitura para o evento; posteriormente, em 1976, numa visita do General Geisel à Campinas, por motivos eleitorais, novamente o Coral comparece sem conseguir contar com seu corpo pleno, num episódio que contou até com o grampeamento do telefone da maestrina assistente, Profa. Vilma Brandenburgo, pelas ‘forças de segurança’ para escuta das dissenções que o episódio causara. Esse segundo constrangimento havia sido requisitado para compensar a presença de cantores do Coral que se apresentaram no Culto Ecumênico em memória de Wladimir Herzog, depois de seu assassinato em tortura no DOI-CODI de São Paulo, em novembro/75, e que foi noticiado na imprensa local como presença do Coral Unicamp.
Benito defendeu com todas as suas forças a posição conquistada no Departamento de Música da Unicamp, mesmo depois da recusa do Prof. Kollreutter em assumir a condução da implementação do Departamento e do Curso de Música, pois sabia o quanto aquilo significava nos embates dos grupos de interesse consolidados nas instituições de música erudita, onde os discípulos do Prof. Kollreutter eram tidos como heréticos. Ordenados em torno de uma perspectiva nacionalista e conservadora , discípulos do compositor Camargo Guarnieri, capitaneados pelo maestro Eleazar de Carvalho, mantinham o culto à pompa musical tradicional, e a vassalagem aos poderosos da vez, e  faziam da música erudita um acervo que se interrompia no limiar do Século XX, sem incorporar os desdobramentos da contemporaneidade, do dodecafonismo – que Kollreutter introduziu no país – das contribuições do poliritmismo, da música aleatória, do concretismo, e das permeações da música erudita com a música popular, onde o jazz era o campo mais explorado. Nesses embates, maestros colegas de Benito, como Júlio Medaglia, Rogério Duprat, Damiano Cozzela, Moacir Del Pichia, e outros, eram tidos como malditos por ignorarem estas restrições ao campo da criação musical.

Sobre a miscigenação cultural que praticava, ele costumava dizer que uma orquestra pública não poderia deixar de fazer com que os músicos, sejam eles de qual gênero sua obra, não pudessem explorar a complexidade da estrutura orquestral: de Mílton Nascimento a Chitãozinho e Xororó, um grande número de músicos da música popular brasileira usufruíram deste caráter de orquestra pública, conforme sua concepção estabelecia.

Nestes embates, Benito contava com o reconhecimento da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) e de setores da burocracia cultural das Secretarias de Estado de Cultura, depois alojados na Secretaria Municipal de Cultura que organizavam o Movimento Mário de Andrade. Na primeira metade dos anos setenta, recebeu quase que todos os prêmios de Melhor Coral do Estado, com o CoralUsp e com o Coral Unicamp, e na segunda metade da década, com a Sinfônica de Campinas.
Provocações e retaliações foram constantes na relação de Benito com os conservadores no campo musical: em 1975, quando do recebimento do prêmio de Melhor Coral da APCA, no Festival de Inverno de Campos de Jordão – o Festival era um dos espaços institucionais controlados pelo Maestro Eleazar de Carvalho – Benito inseriu no repertório a apresentação de uma peça atonal e experimental,  ‘Aleluia’ de Ernst Widmer (também discípulo de Kollreutter), onde a palavra aleluia era decomposta foneticamente, sem qualquer resquício de religiosidade.
Anos mais tarde, no final dos anos 80, Eleazar de Carvalho dá o troco, e veta a apresentação da Sinfônica de Campinas com a peça ‘Carnavais’ de Francis Hime (peça para coro, orquestra e bateria de escola de samba) por se tratar de obra de cunho popular, incompatível com o caráter do Festival de Inverno de Campos de Jordão, restrito à música erudita. A peça, inédita até então, e desconhecida para Eleazar, era tão popular como as obras de Villa-Lobos, na apropriação de valores e temas da cultura popular.
A sustentação política ao trabalho de Benito, ao longo dos 25 anos em que esteve à frente da Orquestra Sinfônica de Campinas, se deu por conta do reconhecimento público por seu trabalho, pela concepção de que como ente  público, a orquestra tinha uma missão de formação cultural e de espelhamento daquilo que a população entendia como música, preservando sempre a diversidade de estilos e gêneros de nosso universo cultural. Concertos por escolas, ginásios, espaços abertos, subgrupos da orquestra desenvolvendo gêneros específicos, tornando a Orquestra um patrimônio cultural incorporado pela população. Interagiu com grupos estabelecidos na cidade, atraindo-os para desenvolver projetos com a Orquestra, e vivenciar o aprendizado da complexidade da estrutura sinfônica.
Ser o regente do concerto da Campanha das Diretas, que o projetou como um ícone político da redemocratização do país, foi apenas a consequência lógica de sua trajetória construída no arrepio das tradições, e sem maiores estresses políticos, pois o Prefeito de Campinas à época, Magalhães Teixeira, era um dos próceres da Campanha das Diretas no Estado.
Sua concepção de música coral se prolifera com seus discípulos formados nas instituições que participou e na incorporação da música popular como um assunto universitário, com a criação do curso da Unicamp que pauta essa linguagem como prática cultural de relevo social. Onde a prédica enunciada por Paulinho da Viola e Élton Medeiros – ‘sambista não tem valor nesta terra de doutor’ –  deixa de ter sentido.
Depois de retornar a São Paulo, transforma o CoralUsp numa estrutura rizomática, disseminando grupos corais em várias unidades da Universidade, com um conjunto de regentes, e que confluíam periodicamente para compor grandes espetáculos.
Leais ao percurso do fundador, um dos  corais rizomáticos, o CoralUsp Lapa se articula durante a pandemia e deixa na internet sua contribuição para o entendimento do distanciamento social com a música ‘20Ver’. Assistam abaixo.
A obra do artista permanece como  um amálgama sedimentar de um campo liberto para as novas criações, fusões, reinterpretações.
Campinas – Agosto/2020

Batata é servidor municipal de cultura de Campinas

 
 


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